UMA INTERPRETAÇÃO HERMENEUTICAMENTE ADEQUADA DO ART. 25, § 2º, DA EC 103/2019
Segundo Lenio Luiz
Streck, não mais interpretamos para compreender e, sim, compreendemos para
interpretar.[1] Isso significa, por outras palavras, que ao intérprete é
possível buscar os sentidos prévios construídos ao longo da história e
consolidados pela tradição sobre determinando tema. Nessa perspectiva, “a
interpretação deixa de ser uma mera reprodução da literalidade do enunciado e
passa a ser uma constante construção de sentido”.[2]
As possibilidades de
interpretação do dispositivo que veda a conversão do tempo de serviço especial
em comum devem observar os princípios que fundamentam a própria aposentadoria
especial, – prevista no art. 201, § 1º,
CF/88, onde assume nítido caráter de direito subjetivo de natureza fundamental
e social –, quais sejam, da prevenção/precaução, igualdade e proteção
social, para citar apenas estes. Neste nível, a aposentadoria especial aparece intimamente
imbricada com a faticidade humana e
relacionada com o princípio da dignidade humana, além de outros direitos
fundamentais. Ao perquirir a finalidade do benefício, o Supremo Tribunal
Federal assim concluiu:
[...] deve-se
indagar: qual a finalidade da previsão constitucional do benefício
previdenciário da aposentadoria especial? Por óbvio, é a de amparar, tendo em
vista o sistema constitucional de direitos fundamentais que devem sempre ser perquiridos – vida, saúde,
dignidade da pessoa humana -, o trabalhador que laborou em condições nocivas e
perigosas à sua saúde, de forma que a possibilidade do evento danoso pelo
contato com os agentes nocivos levam à necessidade de um descanso precoce do
ser humano, o que é amparado pela Previdência Social.[3] (Grifo nosso).
A doutrina rompeu com a ideia de “compensação”, que,
inevitavelmente, faz referência ao dano – como se aceitável –, para defender
que a aposentadoria especial tinha como finalidade oferecer possibilidades de prevenção/precaução
contra danos à saúde e/ou integridade física/mental do trabalhador humano. Isso
nada mais é – e por isso é muito – do
que deixar
ingressar no cenário jurídico (Direito Previdenciário) uma nova concepção
de Previdência Social, comprometida com a gestão dos riscos no meio ambiente do
trabalho.[4]
Essa dimensão
preventiva e protetiva foi incorporada/reafirmada pela Lei de benefícios, com
especial atenção para os artigos 57 e 58. Com efeito, antes de ser prevista sua
(im)possibilidade para outras modalidades de aposentadoria, a conversão do
tempo de serviço especial em comum tem como fundamento o art. 201, § 1º, uma
vez que a Constituição nunca restringiu o tratamento diferenciado dispensado
aos segurados expostos a agentes nocivos ao cumprimento de 15, 20 ou 25 anos,
ou seja, essa discriminação jurídica positiva independe do tempo de exposição
e/ou do preenchimento dos requisitos ensejadores da aposentadoria especial, tal
como foi regulamentada pela Lei 8.213/91.
Em que pese a conversão
ser resultado da divisão do número máximo de tempo comum pelo número máximo de
tempo comum (raciocínio lógico), não se pode separar o direito à conversão do
cálculo do fator, como se por trás deste último não houvesse qualquer
fundamento de direito, de modo a realizar-se por si só. A conversão do tempo é critério meramente matemático invocado em razão
do princípio da isonomia (matemática), conforme repetitivo nº 1.251.363/MG.
Destarte, resta claro que o tempo resultante da conversão do tempo especial em
comum não é ficto. Segundo Marcelo Barroso
Lima Brito de Campos: “Não se trata de tempo fico, mas de tempo real convertido
para outra modalidade de aposentadoria”. Enquanto persistir a discriminação
jurídica positiva em favor de quem trabalha exposto a agentes nocivos, entendo
que seja possível, também, a conversão. A vedação, portanto, ofende o art. 201,
§ 1º, da CF/88.
A essa altura já se
poderia dizer que não é possível a exclusão da conversão do tempo especial
comum. A pergunta – perturbadora – é
a seguinte: mesmo que a vedação esteja prevista na própria Carta?
Numa perspectiva
sistêmica, poder-se-ia falar num “conflito intrassistêmico” ou, do ponto de
vista da dogmática jurídica, uma verdadeira “antinomia constitucional”, já que é
flagrante a contradição entre o artigo 201, §1º, da CF e o dispositivo que veda
a conversão do tempo de serviço especial em comum, vale dizer: entre o artigo
que determina um tratamento diferenciado para quem trabalha sob condições
especiais e o dispositivo que restringe sua utilização na prática.
Seja qual for a
abordagem, é possível se afirmar que, para solucionar esse conflito, sempre
será aplicado algum princípio, bem assim se exigirá uma leitura sistemática da
Constituição, vale dizer, uma interpretação conjunta e simultânea dos arts. 7º,
XXIII, 193, 200, VIII, 201, § 1º, e art. 225, caput, e V, para citar apenas
estes. A norma que solucionará o conflito será fruto da interpretação desses
artigos, sendo que o sentido atribuído aos seus textos deve ser construído sob
a inspiração dos princípios que os fundamentam.
Sobre uma leitura
integrada do Direito, cumpre observar que a Constituição de 1988 – e antecipando a promulgação da Convenção 155 da
Organização Internacional do Trabalho pelo
Decreto nº 1.254, de 29 de setembro de 1994 – conferiu ao cidadão o direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, nele compreendido o meio ambiente laboral
(art. 225), determinou, como direito fundamental social dos trabalhadores, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho,
por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (no artigo 7º, inciso
XXII), com vistas a conservar a “existência
digna” do trabalhador (art. 170, caput), bem assim como condição
da dignidade humana e justiça social (art. 193), devendo,
até mesmo, o SUS “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido
do trabalho”. (art. 200, inc. VIII). Isso tudo deságua no art. 201, §º, da CF.
Transportando essa
questão para a hermenêutica jurídica, contudo, o conflito só existe para quem tem
uma pré-compreensão do “fenômeno”. Na tradição brasileira, o reconhecimento da
atividade especial, para fins de redução do tempo de trabalho, surgiu como uma
alternativa diante da opção do legislador de compensar o desgaste dos trabalhadores
com adicionais de insalubridade ou periculosidade, – colocando, assim, a redução dos riscos no meio ambiente do trabalho em
segundo plano –, bem como o fato de alguns serviços, a despeito de sua insalubridade,
continuarem a existir ou a tecnologia não evoluir o suficiente para torná-los
virtuais.
Ainda, é preciso
entender que, no interior de um Estado Democrático de Direito, a tarefa do juiz
não se resume à mera tradução dos termos contidos no texto (interpretação através
do método literal). Não é possível interpretar-se literalmente a regra contida
no art. 25, § 2º, da EC 103, 2019, pois isso levaria a contrariar e negar
eficácia jurídica aos princípios que fundamentam o reconhecimento da atividade
especial. Explica Streck:
Com efeito, para
que se possa compreender que uma regra é inaplicável, o intérprete já deve
possuir – e, sem dúvida, já a possui – a pré-compreensão antecipadora, isto é,
como por trás de toda regra há um princípio que a sustenta, a compreensão do
princípio instituidor é condição de possibilidade para que se possa dizer que a
regra é inaplicável àquele determinado caso. Assim, é possível dizer que regra
e princípio não estão ‘deslocados’ um do outro e tampouco há qualquer imanência
entre ambos. Em outras palavras: quando as teorias da argumentação sustentam
que em face a insuficiência da regra, estar-se-á diante de um caso difícil,
esquecem-se de que o afastamento da regra pelo princípio somente pode ocorrer
porque o intérprete já compreendeu a insuficiência da regra.[5]
É inaceitável a prevalência
de uma regra que veda a conversão do tempo de serviço especial em comum em
detrimento dos princípios que fundamentam a necessidade de um tratamento
diferenciado para trabalhadores expostos a agentes nocivos e, assim, a própria
conversão. Para Eros Grau, a regra é que confere concreção aos princípios[6],
logo, como não admitir a existência de colisão ou, pior ainda, admitindo-a, como
aplicar – ainda assim – a regra? Sobre isso, aduz Lenio Luiz Streck:
Com efeito, não
poderá haver colisão entre regra e princípio: logo uma regra não pode
prevalecer em face de um princípio. Se correta a tese de que por trás de cada
regra há um princípio, então a afirmação de que, em determinados casos, a regra
prevalece em face ao princípio, é uma contradição. A prevalência de regra em
face de um princípio significa um retorno ao positivismo, além de independizar
a regra de qualquer princípio, como se fosse um objeto dado (posto), que é
exatamente o primado da concepção positivista do direito, em que não há espaços
para os princípios.[7]
Nessa perspectiva, nenhum
princípio pode explicar a vedação. A inexistência de um princípio capaz de
justificar tal proibição desqualifica uma interpretação literal do texto,
enquanto único fundamento válido.
Apesar de a
aposentadoria especial traduzir o modo mais específico de reduzir o tempo de
trabalho exposto a agentes nocivos, com proposição para diminuir a
probabilidade de dano e, com muito mais razão, atenuá-lo, a soma do tempo de
serviço especial, após a sua respectiva conversão, permitia a redução do tempo
de contribuição, também, para fins de concessão de aposentadoria por tempo de
contribuição. Após a reforma da previdência social, a conversão se mostra ainda
mais importante, já que, com o estabelecimento de uma idade mínima para a
aposentadoria especial, sua utilização nas regras de transição por pontos tem
como finalidade reduzir a idade.
No momento em que o
jurista entende qual a função dos princípios, estes começam a ficar visíveis – mesmo quando não mencionados expressamente na
decisão. Assim sendo, decidir se é possível a conversão do tempo, mesmo após
a promulgação da EC 103, 2019, equivale a lançar melhor luz não apenas sobre
art. 201, §1º, da CF, mas os objetivos de um Estado
Democrático de Direito, o que fica mais fácil quando consideramos os princípios
aceitos pela comunidade – e que comandam a aplicação das regras –, por
reclamarem coerência e adequação social.
Em sentido muito próximo,
Ronald Dworkin chama atenção para o princípio da integridade, que “pede que os
juízes tornem a lei coerente como um todo”. Sustentar que o direito como
integridade oferece uma interpretação melhor da questão. A vedação da conversão
do tempo de serviço especial em comum, assim como uma idade mínima para o
benefício de aposentadoria especial, é incompatível com os princípios mais
fundamentais, necessários à justificativa do direito como um todo.
Como já se viu à saciedade,
a história é importante para justificar tanto status quanto o conteúdo das decisões anteriores. Nesse sentido, Dworkin explica:
O direito como
integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do
convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do
pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações
jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos
que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática
jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim,
o direito como integridade rejeita, por
considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem o inventam o direito;
sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes
fazem as duas coisas e nenhuma delas.[8] (Grifo nosso)
A nossa preocupação é
com o Poder Judiciário, quando ele se transforma num instrumento do
positivismo, reproduzindo as incoerências do legislador e, por vezes, deixando
o direito – que não cabe na lei –
ainda mais incoerente e mais distante do mundo prático. Os textos jurídicos
nunca surgem em sua abstratividade atemporal e a-histórica alienados do mundo da
vida, como escreveu Paulo Afonso Brum Vaz, antes de citar Hans-Georg Gadamer:
“Compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios, e saber que,
embora se tenha que compreendê-lo em cada caso de uma maneira diferente,
continua sendo o mesmo texto que, a cada vez, se nos apresenta de modo
diferente”.[9]
Sobre vedação da
conversão do tempo especial, pela via da periculosidade, em comum, é suficiente
reter que o princípio tempus regit actum possui destacada importância em
matéria previdenciária, sobretudo na doutrina do Supremo Tribunal Federal: “pela
lei vigente à época de sua prestação, qualifica-se o tempo de serviço do
funcionário público, sem a aplicação retroativa de norma ulterior que nesse
sentido não haja disposto”.[10]
Assim,
independentemente da alteração legislativa quanto à caracterização da atividade
especial pela via da periculosidade, o que deve ser observado é a legislação
vigente ao tempo da prestação do serviço. Esse princípio impede a retroação da
lei nova mais restritiva, por forte influência dos princípios da segurança
jurídica, da proteção da confiança do cidadão e da boa-fé administrativa.[11]
A discussão sobre se a
redação do art. 25, § 2º, da EC 103/2019, exige o efetivo dano à saúde é
meramente verbal ou falsa. O que se entende como “que efetivamente prejudiquem
a saúde” é, simplesmente, com potencial de prejudicar a saúde como, por
exemplo, o agente físico ruído. O ruído acima de
85 decibéis implica risco potencial de surdez ocupacional, como se verifica na Norma de Higiene Ocupacional - NHO 01, emitida pelo Ministério do
Emprego (FUNDACENTRO).[12] Trata-se de um “reforço”, vale dizer: estamos
falando de agentes efetivamente nocivos à saúde (riscos conhecidos).
Escrito por Diego
Henrique Schuster
_________________________________________
Bah1:
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição
constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 204.
Bah2:
BUFFON, Marciano. Princípio da capacidade contributiva: uma interpretação
hermeneuticamente adequada. In: CALLEGARI, André Luís; STRECK, Lenio Luiz;
ROCHA, Leonel Severo (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica:
anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e
doutorado: n. 8. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011.
p. 250. p. 233.
Bah3:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo
em recurso extraordinário nº 664.335. Recorrente: Instituto Nacional do
Seguro Social. Recorrido: Antônio Fagundes. Relator: Ministro Luiz Fux.
Brasília, 04 de dezembro de 2014. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=
TP&docID=7734901>. Acesso em: 10 dez. 2019.
Bah4:
Trata-se de um trabalho inédito na literatura previdenciária: SCHUSTER, Diego
Henrique. Aposentadoria
especial: entre o princípio da
precaução e a proteção social. São Paulo: LTr, 2016.
Bah5:
STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e a teoria da argumentação na
ambiência do debate positivismo (neo) constitucionalismo. In: Diálogos constitucionais: direito,
neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 291-292.
Bah6:
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na
constituição de 1988: interpretação e crítica. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1997. p. 118.
Bah7:
STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e a teoria da argumentação na
ambiência do debate positivismo (neo) constitucionalismo. In: Diálogos constitucionais: direito,
neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 292.
Bah8:
DWORIKN, Ronald. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2014. p. 271.
Bah9:
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método:
traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo
Meurer, RJ: Vozes, 1999, p. 579.
Bah10:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 382.352. Recorrente:
Genelícia Isaltina de Souza. Recorrido: Universidade Federal de Santa Catarina.
Relª. Minª. Ellen Gracie. Brasília,
06.02.2004. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261655>.
Acesso em: 10 dez. 2019.
Bah11:
SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba:
Juruá, 2011. p. 255-256.
Bah12:
Os critérios estabelecidos na NHO 01, por exemplo, estão baseados
em conceitos e parâmetros técnico-científicos modernos, seguindo tendências
internacionais atuais, não havendo um compromisso de equivalência com o
critério legal.
Prezado dr. Schuster: embora já conhecesse alguns escritos seus (todos muito bons), descobri ontem este blog. Sobre esse tema específico, e sob uma perspectiva de argumentação que creio complementar à desenvolvida no texto do blog, ajuizei a ação civil pública 1027159-78.2020.4.01.3800, que o sr. - caso queira - poderá ler ingressando no PJE de 1º grau do TRF-1. Acrescento algo que o sr. certamente já deve ter percebido: o Tema 942 do STF legitima a conversão pós-reforma, como realço na réplica do referido processo. Saudações cordiais.
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