(IM)POSSIBILIDADE DE PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA APOSENTADORIA ESPECIAL NA HIPÓTESE EM QUE O SEGURADO PERMANECE NO EXERCÍCIO DE ATIVIDADES LABORAIS NOCIVAS À SAÚDE



                Já vi Lenio Luiz Streck e Georges Abboud utilizarem a seguinte metáfora:
Dois (ou mais) garimpeiros faziam o seu garimpo, lavando suas pedrinhas na bateia e, ao longe, avistaram um monte de gente brigando. Dois grupos se dilaceravam. Um disse para o outro: você está vendo o que eu estou vendo? O outro respondeu: - ‘sim, um bando de gente brigando. Parece que não têm o que fazer. Vamos continuar nosso garimpo. Esse é o nosso ofício’. Pois é. Aquele ‘bando de gente brigando’ era a batalha dos Guararapes, que mudava a história do Brasil. Mas, para os garimpeiros, isso nada significava. Estavam alienados.[1]
            Essa metáfora poderia nos ajudar a compreender o porquê de muita gente não se importar com a reforma da previdência social, ou seja, só se preocupa quem sabe o que ela pode significar para os trabalhadores (para si mesmo) e os mais pobres. Aliás, essa metáfora poderia nos ajudar a compreender o motivo pelo qual tantas pessoas aceitam, de modo acrítico, o que está acontecendo nesse país, no interior de um EDD.[2] O engraçado (ou trágico) é ver aquele feliz com isso, “se é assim, está bom” ou “agora vai”, dando-se a ilusão de estar tudo sob controle. Como tudo se resume a uma briga de torcidas, muitos insistem em dizer que enxergam na escuridão (HG).
Entretanto, o presente artigo captura, mas não lida diretamente com o tema reforma da previdência (entendido, à toda evidência, à luz do cenário político). Tentarei explicar melhor. O artigo versa sobre a possibilidade do percipiente de aposentadoria especial permanecer num trabalho insalubre (Tema 709). A metáfora serve para alertar a comunidade jurídica sobre os cuidados que esse tema reclama, mormente às vésperas de uma proposta de reforma da previdência, na qual se pretende colocar todos os benefícios no mesmo nível (já escrevi sobre isso). Em poucas palavras, esse tema não é para garimpeiros alienados – que não possuem uma (pré)compreensão da finalidade do benefício.
            Uma saída seria alegar que no Regime Geral de Previdência Social não existe a aposentadoria compulsória, ou melhor, ela só existe se a empresa requerer e o segurado contar com 70 anos de idade, se homem, ou 65 se mulher, conforme consta no art. 51 da Lei de Benefícios. Só que vejamos: no julgamento do E-ED-RR-87.86.2011.5.12.0041, em 25.05.2015, o Tribunal Superior do Trabalhou firmou entendimento no sentido de que a concessão de aposentadoria especial acarreta a extinção do contrato de trabalho por iniciativa do empregado. Ocorre, segundo o entendimento do TST, a resilição unilateral do contrato de emprego por iniciativa do próprio empregado. Apesar de não existir uma norma que imponha a demissão do trabalhador aposentado pela empresa, a decisão trabalhista é utilizada para se negar ao beneficiário da aposentadoria especial o direito de reintegração ao trabalho insalubre.
No que mais interessa à área previdenciária, o que se tem é a ideia de que a contagem diferenciada somente se justifica em razão da não continuidade do trabalho, assim como na aposentadoria por invalidez. Na decisão trabalhista, defendeu-se expressamente que a aposentadoria especial era compulsória, sendo “dever do Estado impedir que o trabalhador permaneça trabalhando em condições comprovadamente prejudiciais à saúde e/ou à integridade física”. Concordamos que o objetivo da lei é preservar o trabalhador, digo, escrevi no meu livro que a decisão do TRF4, no julgamento Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade 5001401-77.2012.404.0000, “parece contrariar o objetivo do benefício, no sentido de evitar a efetiva incapacidade do trabalhador pela redução do tempo de trabalho/contribuição mínimo, e, ao mesmo tempo, reforçar o seu caráter compensatório”.[3]
Nessa perspectiva, é inconteste que a aposentadoria especial perde sua função – de evitar a efetiva incapacidade do trabalhador e, com muito maior razão, atenuar os danos – para adquirir um valor em si mesmo como compensação do desgaste e nada mais, ou seja, a ideia de risco fica então aceitável uma vez mais. Acontece que nem tudo é perfeito (a lei e essa falta de jeito com a vida real!). Para além dos argumentos muito bem lançados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no sentido de que a restrição à continuidade do desempenho da atividade por parte do trabalhador que obtém aposentadoria especial “cerceia o desempenho de atividade profissional, e veda o acesso à previdência social ao segurado que implementou os requisitos estabelecidos na legislação de regência”, o que está em jogo, também, é o futuro do trabalhador e sua família, um futuro que, para muitos, ainda depende do trabalho insalubre, já que o valor do benefício – nem de longe – é suficiente para uma vida digna e inclusiva.
Não se quer, aqui, distinguir se e qual decisão é boa ou má, mas, e isso sim, apontar a existência de pré-juízos inautênticos/ilegítimos (em Gadamer) conformando a nossa pré-compreensão sobre o tema, entre eles, a ideia de que o beneficiário da aposentadoria especial deseja o “melhor dos dois mundos”. Vamos deixar uma coisa clara: para muitos, não se trata de querer o “melhor dos dois mundos”, mas, e isso sim, de precisar o “pior dos dois mundos”, ou seja, o baixo valor da aposentadoria e o trabalho insalubre, ambas as coisas não deixam o trabalhar gozar do descanso merecido. Vale lembrar que ninguém é livre por falta de opção (HG).
Agora, os dilemas podem variar de acordo a profissão e condições financeiras do trabalhador. Há, pois, profundas dessemelhanças entre um trabalhador que precisa continuar trabalhando, para complementar a sua renda e sobrevier, e outro que, com a confirmação de que o § 8º do art. 57 da Lei 8.213/1991 é constitucional, não deixará de ganhar mais para se aposentar. Tomamos como exemplo um trabalhador assalariado e, na outra ponta, um médico.
Mas o problema não se resume a precisar, ou não, trabalhar. Outro argumento que vai ao encontro da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região diz respeito à imprescindibilidade ou a falta de reposição para algumas atividades. Não pretendo, por ora, avançar muito além nesse caminho...
Do ponto de vista jurídico, está-se diante de uma “antinomia constitucional”, em face de a Constituição de 1988, por um lado, assegurar o livre exercício de qualquer trabalho, ofício e profissão (art. 5º, inc. XIII), inclusive sob condições insalubres, perigosas e penosas (art. 7º, XXIII), e ter como fundamento os princípios do valor social do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1º, inc. IV), objetivos de uma ordem econômica que valoriza a “busca do pleno emprego” (art. 170, inc. VIII) como condição da dignidade humana e justiça social (art. 193); e por outro, exigir do Estado e da sociedade um meio ambiente de trabalho equilibrado e saudável, assegurando o direito à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, inc. XXII), com vistas a conservar a “existência digna” do trabalhador (art. 170, caput), devendo até mesmo o SUS “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido do trabalho”. (art. 200, inc. VIII). Como resolver isso?
A meu ver, o problema está menos no fato de o trabalhador permanecer no trabalho insalubre e mais no fato de não dispor de informações sobre os efeitos negativos dos agentes aos quais está sujeito no trabalho, o que o impede de tentar evitar eventual dano futuro e/ou optar por continuar (ou não) exercendo atividades insalubres. Em poucas palavras, ele não sabe que não sabe, e isso pode ser ainda pior, pois: “Quien sabe que se encuentra asegurado puede, bajo condiciones de una constante disposición al riesgo, arriesgar más”.[4]
Segundo Wilson Engelmann e Viviane Saraiva Machado: “A comunicação e o esclarecimento são duas chaves para a implantação da precaução no sistema social”.[5] Ao passo que devemos acreditar que o benefício da aposentadoria especial tem como finalidade reduzir as chances de dano à saúde e/ou à integridade física do trabalhador, sabemos que essa ideia não comporta um ambiente de trabalho insalubre, penoso ou perigoso. Sendo assim, o mais importante é dar ao beneficiário a opção informada de permanecer trabalhando sob condições especiais. A liberdade do trabalho não pode ser prejudicada pela falta de informação. Uma interpretação sistemática da Constituição pode sugerir harmonia material entre os dispositivos supramencionados.
Às vezes não existe saída, digo, todos sabemos que a concessão do benefício da aposentadoria especial não é automático, as empresas insistem em disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente do trabalho – mormente por motivos fiscais – e o reconhecimento do direito, na justiça, pode demorar anos, obrigando o segurado a permanecer no trabalho insalubre para além do tempo exigido pela lei.  Acrescente-se a isso o alto grau de voluntarismo na aplicação das normas, guinadas na jurisprudência, afetação de temas estranhos ao processo de conhecimento, etcetera. De fato, ainda não se compreendeu o caráter protetivo da norma.
Graças aos Juizados Especiais Federais, uma justiça marcada por julgamentos que não primam pela obrigatoriedade de se observar as garantias constitucionais (ampla defesa, contraditório, fundamentação, para citar apenas aquelas que constituem o núcleo duro do devido processo legal),[6] coexistem duas justiças distintas e opostas, mormente no que diz respeito à caracterização e comprovação das atividades especiais. Assim, algo que não poderia ser imaginado acontece com frequência na práxis jurídica, vale dizer, colegas de trabalho, do mesmo setor, acabam recebendo uma resposta diametralmente oposta para os seus pedidos de aposentadoria especial, o que fere os princípios da igualdade, da coerência e, até mesmo, de acesso à justiça.
Por outro lado, também se poderia dizer que a partir da Lei 13.183/2015, que instituiu a formula 85/95 (hoje: 86/96), é possível a concessão de uma aposentadoria tempo de contribuição, mediante a conversão de 25 – ou mais – anos de tempo de serviço especial. Na aposentadoria por pontos não se aplica o § 8º, art. 57, da Lei de Benefícios. Nesse caso, a conversão da aposentadoria especial em aposentadoria por tempo de contribuição pode ser considerada um mero “drible da vaca” ou a prova de que no RGPS não existe, mesmo, a figura da aposentadoria compulsória?
A situação fica ainda mais dramática quando se pensa num indivíduo que exerceu atividades especiais por 24 anos e pouco, uma vez que ele será compensado apenas com a redução do tempo de contribuição, já que sofrerá com a incidência do fator previdenciário sobre todo o tempo de serviço (comum e especial). Pelo menos ele terá a possibilidade de permanecer ou retornar ao trabalho insalubre (se me entendem a ironia). Daí a necessidade de uma análise reflexiva sobre o tema, pois, é flagrante a incoerência legislativa.
Nessa matriz de sentido, acertou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, isto é, a regra em questão não possui caráter protetivo, pois não veda o trabalho especial. Ainda, as novas tecnologias não são garantia de diminuição dos infortúnios, mas, pelo contrário, fazem surgir novos e desconhecidos riscos para o desempenho do trabalho. E é aí que reside outro paradoxo, mas que não me proponho, aqui, a desenvolver.
Com tudo isso não se quer esvaziar o conteúdo material da aposentadoria especial, pelo contrário. O que queremos é reafirmar a dimensão preventiva e o caráter protetivo da norma que prevê um tratamento diferenciado para aqueles que, por opção ou não, trabalha(ra)m sob condições especiais, compatibilizando-a com o direito fundamental ao trabalho e à informação. Aqui é imprescindível uma hermenêutica da faticidade, cuja tarefa está voltada às relações cotidianas do ente homem, “jogado no seu existir, mostrando claramente a sua relação com a finitude do seu tempo”.[7]
O que não se pode admitir é que, caso declarada a constitucionalidade da vedação do segurado de permanecer no exercício de atividades especiais, os efeitos financeiros tenham como início o efetivo afastamento das atividades insalubres, e não a DER, com a subtração dos valores devidos pelo INSS, em razão da sua atuação descomprometida. Ainda, a questão precisa ser adequadamente equacionada do ponto de vista trabalhista, sob pena de trazer mais insegurança jurídica.

Escrito por Diego Henrique Schuster

Bah1: STRECK, lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraira do Advogado, 2013. p. 10.
Bah2: Ninguém se anima a estudar Teoria de Estado ou da Constituição, enfim, o papel de um Estado Democrático de Direito.
SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial: entre o princípio da precaução e a proteção social. São Paulo: LTr, 2016. p. 75.
Bah3: A decisão assim restou ementada: “Previdenciário. Constitucional. Arguição de inconstucionalidade. § 8º do art. 57 da Lei 8.213/91. Aposentadoria especial. Vedação de percepção por trabalhador que continua na ativa, desempenhando atividade em condições especiais. 1. Comprovado o exercício de atividade especial por mais de 25 anos, o segurado faz jus à concessão da aposentadoria especial, nos termos do artigo 57 e § 1º da Lei 8.213, de 24-07-1991, observado, ainda, o disposto no art. 18, I, 'd' c/c 29, II, da LB, a contar da data do requerimento administrativo. 2. O § 8º do art. 57 da Lei 8.213/91 veda a percepção de aposentadoria especial por parte do trabalhador que continuar exercendo atividade especial. 3. A restrição à continuidade do desempenho da atividade por parte do trabalhador que obtém aposentadoria especial cerceia, sem que haja autorização constitucional para tanto (pois a constituição somente permite restrição relacionada à qualificação profissional), o desempenho de atividade profissional, e veda o acesso à previdência social ao segurado que implementou os requisitos estabelecidos na legislação de regência. 3. A regra em questão não possui caráter protetivo, pois não veda o trabalho especial, ou mesmo sua continuidade, impedindo apenas o pagamento da aposentadoria. Nada obsta que o segurado permaneça trabalhando em atividades que impliquem exposição a agentes nocivos sem requerer aposentadoria especial; ou que aguarde para se aposentar por tempo de contribuição, a fim de poder cumular o benefício com a remuneração da atividade, caso mantenha o vínculo; como nada impede que se aposentando sem a consideração do tempo especial, peça, quando do afastamento definitivo do trabalho, a conversão da aposentadoria por tempo de contribuição em aposentadoria especial. A regra, portanto, não tem por escopo a proteção do trabalhador, ostentando mero caráter fiscal e cerceando de forma indevida o desempenho de atividade profissional. 4. A interpretação conforme a Constituição não tem cabimento quando conduz a entendimento que contrarie sentido expresso da lei. 5. Reconhecimento da inconstitucionalidade do § 8º do artigo 57 da Lei 8.213/91.”
Bah4: LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. Universidad de Guadalajara, 1992. p. 160.
Bah5: ENGELMANN, Wilson; MACHADO, Viviane Saraiva. Do Princípio da Precaução à Precaução como Princípio: construindo as bases para as nanotecnologias compatíveis com o meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 18, vol. 69, p. 26, jan.-mar./2013.
Bah6: A inobservância dessas garantias implica ausência de um devido processo legal e jurisdição. Muitos são os segurados que ficam sem justiça para caso concreto, já que nem a prova pericial – indispensável para o julgamento da lide previdenciária – é autorizada.
Bah7: ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 214.

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