MP 871, 2019: UMA MINI- REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Não
há nenhuma novidade, detalhe: quer seja do ponto de vista da revisão de
benefícios por incapacidade e o combate a irregularidades (“pente-fino”); quer
seja do uso abusivo de medidas provisórias, isto é, para inserir restrições e
alterações dramáticas no sistema da previdência social, dificultando, assim, o
acesso da sociedade no debate de seus destinos; quer seja da falta de
conhecimento técnico-jurídico e/ou compromisso com a Constituição, seus
princípios, e a jurisprudência dos tribunais superiores, por parte de quem a
elabora. Com o perdão do chavão: “não há nada de novo no ovo da serpente” (HG)
Sobre
as bonificações dos médicos peritos do INSS, uma reflexão ética deste cenário
se faz necessária. Uma coisa é o servidor analisar a situação do segurado, com
vistas ao preenchimento dos requisitos de um direito fundamental; outra,
bastante distinta, é ele ser pago para apurar irregularidades. A prioridade
deixa de ser a proteção social para ser a localização de indícios de
irregularidade, com a possibilidade de questões meramente formais e/ou
divergências de interpretação, não somente entre o Poder Judiciário e a
Administração, serem levadas às últimas consequências, com a cessação indevida
do benefício - que atende necessidades de caráter alimentar.
Com
isso não se pretende atenuar a aversão às irregularidades,[1] mas alertar sobre
a tendência de um comportamento auto-interessado por parte de quem concede ou
revisa os benefícios. Se antes (já) tínhamos a sensação de existir uma quota de
deferimentos, para os benefícios de incapacidade, o que dizer agora. Enfim, não
queremos que o INSS opere com a mentalidade de uma seguradora, afastando-se
cada vez mais do destinatário das normas previdenciárias. Não se pode deixar
para trás o direito – o benefício e o que ele representa para o segurado –,
objetivo maior do exercício da administração, já que o INSS tem o dever de
proteger socialmente seus segurados. Apesar da necessidade de se ampliar essa
discussão, não pretendo, por ora, avançar muito além nesse caminho...[2]
Há
coisas ainda mais preocupantes, sobretudo, do ponto de vista constitucional,
como o desrespeito à ampla defesa e ao contraditório. O benefício com indícios
de irregularidade ou erros materiais na concessão será suspenso na hipótese de
a defesa (preliminar) ser considerada insuficiente ou improcedente pelo INSS,
sendo que os recursos administrativos não terão efeitos suspensivos. Caso o
beneficiário ou seu representante legal não apresente recurso, o benefício será
cessado. A ideia é que os recursos terão prioridade de tramitação. É normal se
agilizar os atos do processo e julgamento dos recursos, e não uma possível
pena.
Apresso-me
a acrescentar que a Medida Provisória retira a isenção do exame médico para os
aposentados e pensionistas inválidos que já completaram cinquenta e cinco (55)
anos ou mais de idade, quando decorridos quinze (15) anos da data da concessão
da aposentadoria por invalidez ou do auxílio-doença que a precedeu.
Outro
problema, agora corre prescrição contra menores de dezesseis (16) anos, o que
vai muito além de um conflito aparente de antinomias, tendo em vista que o
Código Civil prevê, no seu art. 198, que não correr prescrição contra os
absolutamente incapazes para os atos da vida civil (art. 3º), mas de um
flagrante retrocesso social, já que presumida a imaturidade dos menores de
dezesseis anos e a incapacidade de, por si só, exercerem seus direitos. Ignorar
a vulnerabilidade desses sujeitos – reconhecida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, Constituição Federal (art. 227) e Convenção sobre os Direitos das Crianças – é tornar sua esfera de
direitos ainda mais vulnerável. Segundo a jurisprudência do STJ, o direito dos
menores de dezoito (18) anos está a salvo da prescrição.[3] Quero deter-me um
momento nisso em breve.
Se
o menor de 16 anos não pedir a pensão por morte no prazo de cento e oitenta
(180) dias após o óbito, os efeitos financeiros terão início na Data de Entrada
do Requerimento (DER). Antes, a única possibilidade para a subtração de valores
devidos desde o óbito era a prescrição incidente sobre as parcelas vencidas há
mais de cinco (05) anos do ajuizamento da ação.
Como
se isso não bastasse, o direito ao salário-maternidade decairá se não for
requerido em até cento e oitenta (180) dias da ocorrência do parto ou da
adoção, exceto na ocorrência de motivo de força maior e ou caso
fortuito. Também no que se refere à decadência, pretende-se aplicar um
prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão
do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício, do
ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício. Por
outras palavras, está-se premiando a Administração pela sua falta de interesse
na vida do segurado e penalizando o cidadão por desconhecer os seus direitos.
A
redação vai na contramão da jurisprudência consolidada e ratificada pelo
Supremo Tribunal Federa, no julgamento do Recurso Extraordinário 626.489/SE,
com repercussão geral (Tema 313):
RECURSO EXTRAODINÁRIO. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DE
PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS). REVISÃO DO ATO DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO.
DECADÊNCIA. 1. O direito à previdência social constitui direito fundamental e,
uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição, não deve ser afetado
pelo decurso do tempo. Como consequência, inexiste prazo decadencial para a
concessão inicial do benefício previdenciário. 2. É legítima, todavia, a
instituição de prazo decadencial de dez anos para a revisão de benefício já
concedido, com fundamento no princípio da segurança jurídica, no interesse em
evitar a eternização dos litígios e na busca de equilíbrio financeiro e
atuarial para o sistema previdenciário. 3. O prazo decadencial de dez anos,
instituído pela Medida Provisória 1.523, de 28.06.1997, tem como termo inicial
o dia 1º de agosto de 1997, por força de disposição nela expressamente
prevista. Tal regra incide, inclusive, sobre benefícios concedidos
anteriormente, sem que isso importe em retroatividade vedada pela Constituição.
4. Inexiste direito adquirido a regime jurídico não sujeito a decadência. 5.
Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 626489, Relator(a): Min.
ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-184 DIVULG 22-09-2014 PUBLIC 23-09-2014)
Somente
a revisão do ato de concessão do benefício está sujeita ao prazo decadencial, e
não a sua concessão. Vale transcrever o seguinte trecho: “Vale dizer: o direito
fundamental ao benefício previdenciário pode ser exercido a qualquer tempo, sem
que se atribua qualquer consequência negativa à inércia do beneficiário [...].
Nesse sentido, permanecem perfeitamente aplicáveis as Súmulas 443/STF 5 e
85/STJ 6, na medida em que registram a imprescritibilidade do fundo de direito
do benefício não requerido 7 . 10. A decadência instituída pela MP n°
1.523-9/1997 atinge apenas a pretensão de rever benefício previdenciário.”
A
Turma Nacional de Uniformização chegou a sumular a seguinte orientação:
"Não incide o prazo decadencial previsto no art. 103, caput,
da Lei 8.213/91, nos casos de indeferimento e cessação de benefícios, bem como
em relação às questões não apreciadas pela Administração no ato de
concessão." (Verbete 81). No que diz respeito ao indeferimento, a orientação
é no sentido de que o dies a quo do prazo decadencial é o
indeferimento do pedido de revisão do valor do benefício previdenciário.
Para
finalizar essa parte, cumpre observar que o decurso do tempo não pode legitimar
a violação de nenhum direito humano e fundamental. Nesse sentido, irretocáveis
as considerações feitas por José Antonio Savaris:[4]
Pela primeira via, o decurso do tempo separará a pessoa da proteção
social a que, em tese, faz jus, de modo que o instituto da prescrição do fundo
do direito, nesta seara, pode iludir o direito fundamental à previdência social
(CF/88, art. 6º, caput) e, por conseqüência, o princípio fundamental da
dignidade humana (CF/88, art. 1º, III). Pela segunda via, a prescrição do fundo
do direito revela-se violadora do direito constitucional de acesso à justiça
(CF/88, art. XXXV) e do direito a um remédio jurídico eficaz que a proteja
contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela
Constituição, consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art.
25, item ‘1’ do Pacto de San José da Costa Rica), ato normativo de estatura
supra-legal.
Os
direitos humanos e fundamentais não se submetem ao regime de preclusão
temporal, não sendo adequado considerar extinto o direito pelo seu não
exercício em tempo. Com efeito, não se tomou como inspiração os direitos
humanos, a Constituição e a jurisprudência com DNA constitucional. A crise
política coloca, uma vez mais, a decisão judicial/jurisdicional como arena
privilegiada para a realização do controle convencional e constitucional. No
sonho da “melhor” Justiça, os julgadores não estão isentos de considerar o
direito constitucional e convencional.
A
redação da Medida Provisória não surpreende na parte em que traz, pela terceira
vez, a exigência de uma carência integral (após a perda da qualidade de
segurado) para a concessão dos benefícios de auxílio-doença, de aposentadoria
por invalidez, de salário-maternidade e de auxílio-reclusão, o que se
contrapõe, mais do que nunca, com as condições da sociedade real, nesse mercado
sem instabilidade de emprego e com uma evidente flexibilização/precarização das
relações de trabalho. Também não surpreende, na medida em que não se esconde o
preconceito sublimado contra tal benefício e, consequentemente, a falta de uma
pré-compreensão adequada sobre a sua finalidade no contexto histórico-social, o
aumento da carência de doze (12) para vinte e quatro (24) meses, no caso de
auxílio-reclusão.
No
mais, ainda se poderia comentar que a tarifação da prova estabelecida na Lei
8.213/1991, limitava-se ao tempo de serviço, não alcançando outros fatos
relacionados a direitos previdenciários, como a união estável e a dependência
econômica, que podem ser demonstrados de diversas outras formas, além da prova
documental. A partir da MP 871, de 2019, contudo, deverá ser exigido início de
prova material contemporânea da união estável e da dependência econômica, não
sendo mais admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de
motivo de força maior e ou caso fortuito.
Ah,
será permitida a quebra de sigilo para acesso ao benefício, penhora de bens e
inscrição na dívida ativa, caso haja recebimento indevido de benefício,
inclusive do terceiro que sabia ou deveria saber da origem do benefício pago
indevidamente. Fica a dúvida sobre quem será o responsável pela emissão da
Declaração de Exercício de Atividade Rural (PRONATER?).
Se
a leitura da MP 871 pudesse se limitar ao terreno dos números e gastos com
benefícios irregulares, não haveria o que temer, pelo contrário, teríamos
motivos para comemorar. Acontece que já sabemos o preço disso, em razão da
forma estouvada como é feita: aumento das demandas judiciais (nas esferas
previdenciária, trabalhista e cível) e privações ilegais. Assim como a PEC
287/2016, a MP 871, 2019, agora concretamente, faz parecer um capricho tudo
aquilo que já se discutiu, na doutrina, jurisprudência e salas de aula, sobre a
decadência, a prescrição contra menores, o devido processo legal, o direito
adquirido, o auxílio-reclusão, enfim, sobre as garantias e direitos
fundamentais.
Estamos
retrocedendo velozmente.
Escrito
por Diego Henrique Schuster
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Bah1: A administração pode - e deve- proceder com o
cancelamento de benefício desde que exista comprovação de irregularidade,
havendo para tanto amparo legal no art. 69 da Lei 8.212/91. Acontece que não
são raras ocorrências de indeferimento e corte sem suporte fático e legal.
Bah2: O dito sempre carrega consigo o não dito,
nesse caso, o discurso traz consigo uma presunção de má-fé.
Bah3: SAVARIS, José Antonio. Direito processual
previdenciário. 6. ed. Curitiba: Alteridade, 2016. p. 373.
Bah4: SAVARIS, José Antônio. Direto processual
previdenciário. 3. ed. Curitiba_Juruá, 2011. p. 341.
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