REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: “CADA UM POR SI E DEUS POR TODOS”?



O que se pretende é externalizar os custos da má-gestão – para dizer o mínimo –, ou seja, transferi-los para sociedade, poupando os verdadeiros causadores de arcar com qualquer ônus para reverter, solucionar ou evitar o problema – não vou falar sobre “déficit da previdência social” (isso eu deixo para os especialistas). Assim, os danos e ameaças à previdência social são convertidos em custos para os negócios, perdoando-se dívidas de grandes empresas e professando a fé do mercado.
Agrava o problema a percepção de que os riscos gerados pela reforma da previdência se limitam às gerações futuras, e não à população atual, que poderá optar entre um sistema e outro. Na medida em que as pessoas têm seus direitos ameaçados pela igualdade, elas se tornam mais egoístas e individualistas, admitindo a possibilidade de mudanças dramáticas, desde que seus interesses sejam preservados. Essas pessoas acham que podem criar uma sociedade para uso próprio. 
O que se percebe no discurso é uma democracia sem tendência para a igualdade real (igualdade de condições), e sim uma aposta num sistema político em que os indivíduos são iguais frente a um direito abstrato, ou seja, uma igualdade que se contrapõe com as condições da sociedade real. Essa ficção representa o fim da solidariedade, mormente em matéria previdenciária.
Esse é o resultado de um processo cego e surdo para suas consequências, ou seja, enquanto direitos sociais são (quase) sempre vistos como custos, na melhor relação custo-benefício, não se analisa a previdência social na perspectiva da gestão do risco, das ações afirmativas, das políticas de Estado e/ou das promessas da modernidade. Não se faz um estudo de impacto social e, até mesmo, econômico. Esse último porque não se considera o dinheiro que os benefícios fazem circular (numa ideia de distribuição e repartição de riquezas), fornecendo condições materiais de vida digna e inclusiva ao trabalhador e sua família, o que, ao mesmo tempo, contribui para a diminuição da violência, da injustiça, da exploração, da fome, da precarização do trabalho, das doenças, da ignorância, etcétera.
A previdência social visa não apenas a proteção social, mas a distribuição de riquezas e o equilíbrio do sistema, constituindo, também, uma medida compensatória para uma população à merece de um mundo cada vez mais distante do ideal. 
A minha preocupação, portanto, é – e sempre foi – com os mais pobres, com as desigualdades sociais, logo, de tudo que já se ouviu ou viu na PEC 287/2016, a preocupação maior é com a instituição de uma idade mínima e, na outra ponta, o aumento do tempo de contribuição mínimo para aposentadoria por idade. Então, antes de “jogar fora a criança junto com a água suja” com fundamento em mentiras (e.g.: “acabar com privilégios”), por que não buscar outras soluções que não acabar com as chances de muita gente trabalhadora se aposentar ou, com muito maior razão, sofrer para se aposentar? A inacumulabilidade de benefícios e/ou a fixação de um teto, a modificação do coeficiente das pensões por morte, a contribuição do inativo é sempre um minus em relação a uma idade mínima de 65 anos para quem trabalha pesado desde cedo e ganha pouco.
Imagine agora, nesse mercado sem instabilidade de emprego e com uma evidente flexibilização/precarização das relações de trabalho, a adoção de um sistema de capitalização, em que cada trabalhador é responsável por guardar dinheiro para a sua própria aposentadoria. Quantos conseguirão cumular uma quantia suficiente para bancar sua aposentadoria ...até o último dia de vida? 
O critério da idade mínima tem relação direta com a capacidade contributiva do segurado e, consequentemente, as condições sociais, de saúde e de (in)salubridade de uma população, atingido, de forma desproporcional, regiões, estados e pessoas, do centro para a periferia já se pode perceber diferença na expectativa de vida. Quanto menor a expectativa de vida ao nascer, maior é a necessidade de medidas que compensem a sociedade (e não só o segurado destinatário do benefício) pelas disfunções e pelos riscos que ameaçam a própria integridade do sistema.
A expectativa de vida da mulher é de 79,1, enquanto a do homem é de 71,9. A esperança de vida ao nascer desse último é de 75,4 anos no Estado de Santa Catarina, o que é superior a dos alagoanos (66,5 anos). Por outro lado, uma recém-nascida em Santa Cataria espera viver 82,1, já no estado de Roraima, 74,0. Considerando os extremos dos valores das expectativas entre homens e mulheres, uma recém-nascida no Estado de Santa Catarina esperara viver em média 15,6 anos a mais que um recém-nascido do sexo masculino em Alagoas (esses são dados do IBGE). Como se vê, as perspectivas não são nada animadoras.
A reforma da previdência social é ao mesmo tempo tema do governo e um problema para si próprio. O mercado repercutiu negativamente ao anúncio tanto de uma reforma “suave” como “radical”, o que significa que essa “referência” depende, sim, da intervenção do Estado. Isso porque os direitos fundamentais, com especial atenção para a previdência social, não são uma consequência do desenvolvimento social e econômico, mas uma necessidade. A sociedade é dona de sim mesma e, por isso, não pode ser pensada (apenas) à luz das especulações do mercado econômico.
Já contei essa, mas economia é como religião, a gente precisa acreditar. Mesmo sob o viés de uma interpretação utilitarista, falar em cortar ou reduzir direitos (e.g.: décimo terceiro, férias, aposentadorias, para citar apenas estas parcelas/prestações) enfraquece a esperança na economia, mormente local, gerando decepções e um profundo estado de descrença, o que só faz aumentar a crise.      
É bom ver que o canto de sereia já não agrada mais as mesmas audiências. A preocupação não é com o andar de baixo, digo, a preocupação não é verdadeiramente com os trabalhadores. O consenso não pensado e ileso de críticas de ontem, destinado a unificar e mobilizar os espíritos e vontades a fazer o que for necessário para se vencer os inimigos do Brasil, não vai nos salvar dos velhos-novos inimigos. A verdade não depende de consenso.
           
Escrito por Diego Henrique Schuster

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