Separação entre direito processual e material: quando o processo, a técnica, perde de vista o mundo prático



Você percebe que o processo está perdendo de vista o direito material quando o cerceamento de defesa, um vício maior, não é enfrentado pela turma de uniformização, sob o pretexto da separação entre direto material e processo, ou, ainda, quando, na mesma ação, é reconhecida a especialidade de um período que nada mais é do que a continuação de outro já analisado na demanda anterior, apostando o julgador na coisa julgada sobre este último, mesmo que diante de uma prova nova, ao qual o segurado não teve acesso na demanda anterior e que recompõe situação fática sempre existente.
Esses são reflexos dos pré-juízos inautênticos da tradição[1], retroalimentados por uma jurisdição extremamente declaratória e uma abordagem dogmático-científica do Direito, em que não se pergunta pelo sentido das coisas. Isso tudo se manifesta a partir da defesa de inúmeras dicotomias como, por exemplo, entre fato e direito, texto e norma, regra e princípio, etcétera. No que diz respeito à relação entre direito material e processo, ela é atingida por uma concepção abstrata, razão pela qual a preocupação é mais com a diferença, que separa, e não com aquilo que une ambos, isto é, a realização do direito material pelo processo.
Voltando ao começo. É surpreendente que se entenda que o cerceamento em matéria probatória alcance somente o direito processual, e não o direito material. Se a pretensão do segurado depende da prova requerida (pericial), sua negativa implica autêntica denegação de justiça. Com efeito, isso comporta uma discussão sobre o direito (material) à proteção social, na medida em que a concessão do benefício de aposentadoria especial depende da caracterização e comprovação da atividade especial. A questão é: inviabilizada a demonstração da atividade especial, isso não implica uma questão de direito material?
A prova perícia não é apenas um elemento (instrumento) de prova, mas condição para a concretização de um direito, assim como são os formulários para requerimento da aposentadoria especial. Não há como separar os requisitos ensejadores do benefício da prova e, consequentemente, do direito material. O conjunto de normas que regulamentam os fatos jurídicos que se relacionam ao benefício previdenciário (bem da vida) não se contrapõe, nesse sentido, ao direito processual à prova. A prova integra a matéria do direito objetivo, isto é, as regras abstratas criadoras do benefício previdenciário.
Aqui se chama atenção para o valor jurídico da prova, sua admissão ou não em face da norma que a disciplina, questão de direito e, portanto, passível de exame pelas Turmas Uniformizadoras. Não se trata, portanto, de mera recondução de regra de direito processual à norma de direito material, ou melhor, de recondução de uma garantia fundamental (direito à prova), compreendida à luz do princípio do devido processo legal, à norma de direito material. Aqui é necessário um esforço hermenêutico.
Não se pode elevar a discussão sobre o cerceamento de defesa a mais absoluta processualização, desvinculando-a totalmente do direito material. Até mesmo numa perspectiva exclusivamente processual, o cerceamento de defesa em matéria probatória é um vício que comporta exame oficioso a qualquer tempo. Portanto, é nulo o processo em que constatada qualquer supressão ao amplo direito da parte provar sua versão dos fatos (previsão expressão no art. 5º, LIV, LV e LVI, da CF/88). Nesse sentido, Fernando Rubin[2]:
Não obstante a falta de vinculação expressa no texto da lei processual a respeito desta nulidade absoluta (vício não cominado pelo CPC), a previsão constitucional supera com tranquilidade a imprecisão do Código, sendo certo que a gravidade imposta pelo cerceamento de defesa é vício tão grave (senão maior) quanto aquele que pode recair sobre a citação, a intimação, e o próprio corpo da sentença.
Portanto, o que está em jogo é o direito fundamental à prova, “um direito fundamental, não admite restrição que não seja fundamentada em outro valor ou princípio constitucional”.[3] Todas as garantias constitucionais revestidas de índole processual devem ser mantidas em qualquer fase do processo, sob pena de ferir-se a própria filosofia constitucional.
Se o que queremos é "transformação social", por meio do direito, devemos "ir aos fatos", mundo da vida. Sustentar a cisão entre direito material e processo retira do Poder Judiciário a responsabilidade pela ausência de justiça no caso concreto.

Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1: A expressão” inautêntico” é utilizada no sentido gadameriano da palavra.
Bah2: RUBIN, Fernando. As matérias não sujeitas à preclusão para o estado-juiz. Disponível em: <http://www. conteudojuridico.com.br/artigo,as-materias-nao-sujeitas-a-p…>. Acesso em: 1 maio 2018.
Bah3: SAVARIS, José Antonio. Algumas reflexões sobre a prova material previdenciária. Direito previdenciário em debate. Curitiba: Juruá, 2007. p. 55-61.

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