As “máximas de experiência” no processo judicial previdenciário
Estamos mergulhados num mundo
de sentidos, buscando sempre simetrias, buscando o que somos, buscando fatos
que se repetem, uma ordem, um sentido, um padrão, uma hipótese a partir da
observação daquilo que acontece normalmente ao nosso redor.[1] Ao julgar, o
juiz tenta enxergar como se fosse outra pessoa, projetando uma vida na outra.
Assim como os princípios, as regras de experiência – embora muitas vezes de uma
forma imperceptível – são (quase) sempre aplicadas na solução de determinado
conflito, mas especificamente na apuração de fatos ou valoração da prova. Será?
E isto não dá para separar?
Mesmo correndo o risco de
exagerar na simplificação de uma questão tão complexa, o presente artigo
tratará das denominadas “máximas de experiência”, com especial atenção para sua
aplicação no Processo Judicial Previdenciário. Alguns esclarecimentos preliminares são úteis para o desenvolvimento
deste trabalho. Apesar de Gadamer
se apoiar em Aristóteles, a experiência não será trabalhada na perspectiva do
jovem intérprete, que não teve tempo de viver e reviver determinadas situações
da vida. O artigo reconhece e aplaude diferentes pontos de vista.
O novo CPC, no seu artigo
375, dispõe que: “O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas
pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de
experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial”. No CPC/73
constava dispositivo parecido. Era o artigo 335 pelo qual “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de
experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece
e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quando a esta, o exame
pericial”.
Segundo
Humberto Theodoro Júnior, as máximas de experiência representam, na verdade,
“percepções em abstrato do que ordinariamente acontece. Integram a ‘cultura
média da sociedade’, isto é, a ‘cultura do homem médio’, formando um verdadeiro
‘patrimônio comum de uma coletividade’”. E conclui:
Por isso que, sendo noções conhecidas e indiscutíveis, podem ser
utilizadas sem depender de prova e sem violação da imparcialidade do juiz e do
contrário. As máximas de experiência podem formar-se a partir tanto da
experiência comum (empírica) como da
experiência técnica (científica).
Mas, em qualquer caso, deverão cair no domínio público, isto é, no conhecimento
geral do homem médio da coletividade.[2]
Antes de dar início à
nossa própria argumentação a respeito das regras de experiência, gostaríamos de
passar em revista, embora de maneira sumária, alguns ensaios que abordam o
tema, a fim de provocar o debate. Começamos essa revisão pela polêmica coluna
do professor Lenio Luiz Streck: “‘Regras de experiência’, efetivamente, é um
conceito vazio de conteúdo. Sofre de anemia significativa. Pálido. Esquálido. O
que é isto – regras de experiência?” É certo que, para o autor, as regras de
experiência são incompatíveis com uma leitura hermenêutica do sistema jurídico,
uma vez que as regras de experiência entendidas pelo senso comum no juiz não têm
critérios objetivos, não passando de juízos solipsistas. Ou seja, as regras de
experiência implicam posturas que professam voluntarismos e defendem o poder
discricionário dos juízes.[3]
Apesar desse clima,
acreditamos que as regras de experiência podem, na verdade, aproximar o Direito
do mundo prático, auxiliando, sim, na apuração dos fatos e valoração das
provas. Dito em outras palavras,
trata-se de aproximar a experiência da interpretação dos fatos, tal como se apresentam,
ou seja, com o mundo real da vida, dos fatos sobre os quais o julgador deve
exercer seu juízo de convicção. É claro que as regras de experiência devem ser
utilizadas com prudência e aproveitamento. O fato de o NCPC não exigir “a falta
de algo” (falta de normas jurídicas) não significa que as regras de experiência
podem ser utilizadas contra a lei produzida democraticamente.
Segundo
Gadamer: “A compreensão implica sempre uma pré-compreensão que, por sua vez, é
prefigurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que modela
os seus preconceitos”.[4] Apesar de o autor não explicar
adequadamente o contexto do conteúdo da tradição e nem a justificação da
resposta dada à situação concreta[5], é certo que também ingressam na cena as
regras de experiência, pois atingem o intérprete. Em sendo a tradição do
intérprete a grande responsável pela configuração de sua pré-compreensão, as
regras e experiência pretendem justamente inserir-se nesse conjunto. Assim, o
intérprete busca subsídios também nas regras de experiência para a compreensão
do mundo. O agir humano é também organizado por “regras” oriundas da prática,
da vida real.
A propósito, quando se
fala em tradição, tem-se em mente:
O que é consagrado
pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou
anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que
também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui
fundamentos evidentes, tem poder sobre nossa ação e nosso comportamento. [...].
É isso, precisamente, que denominamos, nos limites desse estudo, o termo é
utilizado sem precisar de fundamentação”.[6]
O interprete que está
aberto a ouvir o outro, com intuito do conhecimento, acaba, igualmente,
apreendendo coisas que vão muito além dos fatos em si mesmo considerados, não
caindo, por isso, no clichê: o que não
está nos autos não está no mundo. O
respeito aos contornos de cada situação não deve ser pensado como se a
compreensão pudesse (sempre) retornar ao ponto de partida. O trabalho do
intérprete nunca parte do zero. O filósofo Hans-Georg Gadamer entende que:
O intérprete não pretende outra coisa que compreender esse geral, o
texto, isto é, compreender o que diz a tradição e o que faz sentido e o
significado do texto. E para compreender isso ele não deve querer ignorar a si
mesmo e a situação hermenêutica concreta, na qual se encontra. Está obrigado a
relacionar o texto com essa situação, se é que quer entender algo nele.[7]
As
regras de experiência não dependem apenas das experiências concretas do juiz, a
partir do mundo onde ele está inserido, mas vem ao encontro do juiz homem,
interpelando-o, razão pelas quais elas merecem atenção e respeito. É óbvio que
as regras de experiência não podem ser vistas como um caminho para a verdade. Não
se pode aplicar a máxima de que “cesteiro que faz um cesto faz um cento”! Assim, constituem um ponto de partida. No
processo previdenciário, as regras de experiência devem ser orientadas por
provas (indícios, probabilidades, evidências), o que se assemelha muito ao
raciocínio probatório indutivo.[8] Tomamos
como exemplo o segurado que exerceu a função de “servente” numa empresa de
construção civil. É sabido de todos os profissionais do ramo que ele exerceu
atividades envolvendo contato com cimento, cal, para citar apenas estes
produtos.
Não
obstante, alguns juízes se limitam a dizer que a função é genérica,
indeferindo, até mesmo, a prova testemunhal, – que tem como finalidade
individualizar as atividades do segurado –, sob o argumento de que estas teriam
interesses escusos na ação ou não possuem conhecimento técnico.
Portanto, na falta de
normas jurídicas particulares (a linguagem nem sempre consegue atingir
explicitamente todo o pretendido), as regras de experiência servirão para
mediar, concretizar e justificar uma determinada situação. Em outras palavras,
nenhuma lei precisa ser declarada nula porque vai contra as regras de
experiência. As regras de experiência exigem flexibilidade e abertura para se
buscar uma solução, no caso concreto, que deverá ser lançada ao encontro dos
textos das normas jurídicas e dos princípios, que são responsáveis pelo
refinamento do contexto do conteúdo da tradição[9]. Sim, sabemos que o direito
será “sempre um ‘direito concreto’; um direito misturado com fatos”, pois os
fatos e circunstâncias da causa “jamais estarão contidas na norma”[10]. Por
tudo isso, não se pode olvidar:
E assim temos de concluir, quanto a este último sentido, que o direito
não pode prescindir do facto e que o facto não pode prescindir do direito. Na
verdade, se por um lado não há validade que não seja validade de algo, e de
algo que relativamente a essa intenção fundamentalmente se ofereça na
contingência da facticidade, também a validade jurídica não poderá de ter um
contingente e material sujeito-objecto a predicar, e no qual se cumpra - o
predicado não prescinde do sujeito e terá nele justamente de se afirmar
predicado, uma questio juris é sempre
a questio facti. Por outro lado,
sendo os factos de um problema concreto de direito o objeto intencional da
respectiva questão-de-fato sem referência à questão-de-direito, pois uma quaestio facti é necessariamente a quaestio facti de uma certa quaestio juris.[11]
Nesse
contexto, as regras de experiência precisam ser interpretadas a partir da
temporalidade, ou seja, “o tempo se revela como o horizonte do ser. [...] O que
o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A
estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da
subjetividade. [...] O próprio ser é tempo”[12]. Esse não é mais o mesmo mundo
que antes animou a construção da hipótese de que se deveria “dar a cada um o
que é seu”, uma velha expressão da separação de classes entre proprietários e
os não-proprietários, entre dominantes e os espoliados. Segundo Roberto Lyra Filho: “Nem era senão
por isso que ao escravo se dava a escravidão, que era o seu, no sistema de produção em que aquela fórmula se criou”[13].
Para Wilson Engelmann, “o tempo justamente favorece a construção da
experiência, a aquisição de alternativas para enfrentar as situações concretas
da vida”[14].
As
regras de experiência devem continuar a serem entendidas a partir da falta de
normas jurídicas específicas,[15] com aplicabilidade não apenas na apuração de
fatos controvertidos no processo ou na valoração da prova, mas, e daí se
espraiando por toda a extensão da cognição judicial, na indicação de soluções
para os casos de incidência de juízes de valor, de presunção e de descoberta do
sentido de expressões vagas.[16]
Isso pode causar polêmica
em matéria previdenciária, uma vez que a Lei 8.213/1991 rejeita, expressamente,
a prova exclusivamente testemunhal para a demonstração da relação de labor, com
vistas à obtenção de benefício do INSS. Ou seja, como fica a situação do
trabalhador rural, quando sua prova se limita a testemunhos orais? Nos casos dos trabalhadores rurais conhecidos como boias-frias, porcenteiros, diaristas ou volantes, considerando a
informalidade com que é exercida a profissão no meio rural, que dificulta a
comprovação documental da atividade, o entendimento adotado pelo Superior
Tribunal de Justiça, é no sentido de que a exigência de início de prova material deve
ser abrandada, permitindo-se, em algumas situações extremas, até mesmo a prova exclusivamente
testemunhal. Considerar a
informalidade que paira sobre as atividades exercidas pelos trabalhadores rurais conhecidos como boias-frias, porcenteiros, diaristas ou volantes nada mais
é – e por isso é muito – do que uma regra de experiência.
É razoável, igualmente,
estabelecer, com base nas regras da experiência e de acordo com o que normalmente
acontece, que a deficiência auditiva, sendo moléstia de evolução gradual ao
longo do tempo, não poderia ser inequivocamente conhecida do seu portador
somente a partir da audiometria, contudo, a existência de tal presunção precisa
ficar vigilante a própria existência, para não se esquecer das constantes
surpresas na vida fática. Sob o pretexto de falsas regras de experiência e/ou
pré-juízos inautênticos (no sentido gadameriano) já se cometeram muitos erros
(arbitrariedades).[17] Com efeito, devemos evitar uma assimilação precipitada e
acrítica de tais regras.
Escrito por Diego
Henrique Schuster
___________________________________
Bah1:
GESSINGER, Humberto. Poemas com nota de rodapé. Blogessinger, 26 jul. 2011. Disponível em:
<http://blogessinger.blogspot.com.br/2011/09/pemas-cm-ntas-de-rdape-7.html>.
Acesso em: 21 ago. 2016.
Bah2:
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Código de
processo civil anotado. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 319.
Bah3:
STRECK, Lenio Luiz. O NCPC e as
esdrúxulas "regras de experiência": verdades ontológicas? Revista
Consultor Jurídico, São Paulo, 9 abr. 2015. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2015-abr-09/senso-incomum-ncpc-esdruxulas-regras-experiencia-verdades-ontologicas>.
Acesso em: 19 ago. 2016.
Bah4:
GADAMER, Hans-Georg. Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica. In: FRUCHON, Pierre (org.). O problema da consciência histórica. Rio
de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 13.
Bah5:
ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007. p. 253.
Bah6: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Universitária São Francisco, 1997. p. 372.
Bah7:
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método:
traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
1996. p. 482.
Bah8:
“Com alguma razão o Juiz Amaury Rodrigues Pinto Júnior, citado por Irany Ferrari
e Melchíades Rodrigues Martins, quando assevera que a dor moral “não pode ser
materialmente provada, nem mesmo por indícios, pois ela é de ordem subjetiva e
particularizada para cada indivíduo, motivo pelo qual caberá ao julgador,
utilizando-se de criterioso bom-senso e tendo em conta os valores médios do
cidadão de seu tempo, aquilatar se determinadas situações e fatos podem gerar
‘dor moral’ nas suas mais variadas formas (dor, sofrimento, tristeza,
desilução, etc.). Em outras palavras: a ‘dor moral’ não é provada, mas intuída
pelo juiz á vista de sua experiência e levando em consideração os valores da
sociedade e do homem médio (Acórdão de 12.08.02, exarado no RO
01393/2001-000-24-00-7, do TRT da 24ª Região” (Dano Moral, São Paulo: LTr,
2005, p. 479/480)”. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Dano moral no Direito
Previdenciário. 2. ed. Ltr: São Paulo, 2009. p. 109.
Bah9:
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa:
Edições 70, 1996. p. 180.
Bah10:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição
e execução na tradição romano-canônica. Revista Magister de direito
civil e processual civil, Porto Alegre: Editora
Magister S/A, v.4, n.19, (jul. 2007), p. 22-40.
Bah11: NEVES, A. Castanheira. A distinção entre a
questão-de-facto e a questão-de-direito. Digesta,
escritos acerca do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Vol.
1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 511.
Bah12: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 389.
Bah13:
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito.
São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. p. 28.
Bah14:
ENGELMANN, Wilson. Direito natural, ética e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007. p. 237.
Bah15: O colendo STJ já teve a oportunidade de reclamar a
subsidiariedade do art. 335 do CPC/73, no sentido de que devem ser afastas as
regras de experiência comum do juiz quando se examinar situação-problema para a
qual a lei processual dá a medida ou a solução probatória. REsp 39.236-RJ, Rel.
Min. Waldemar Zveiter, DJU 24.11.97,
p. 61.192.
Bah16:
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de
experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Revista Forense, Rio
de Janeiro, v. 74, n. 261, p. 14, jan./mar. 1978.
Bah17:
É por isso a necessidade de que: “[...] toda interpretação correta tem que
proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos
hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para “as coisas elas
mesmas” [...]. Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa através de
todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude
das ideias que lhe ocorreram. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Universitária São Francisco, 1997. v. 1, p. 356.
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