TEMA 1.246/STJ: UMA RESPOSTA ANTI-HERMENÊUTICA
No julgamento do Tema 1246, o Superior
Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese:
É inadmissível
recurso especial interposto para rediscutir as conclusões do acórdão recorrido
quanto ao preenchimento, em caso concreto em que se controverte quanto a
benefício por incapacidade (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença ou
auxílio-acidente), do requisito legal da incapacidade do segurado para o
exercício de atividade laborativa, seja pela vertente de sua existência, de sua
extensão (total ou parcial) e/ou de sua duração (temporária ou permanente).
É cediço que não existem “casos” em
abstrato. Isso significa que o sentido da norma não preexiste abstratamente,
logo, a aplicação do direito não se resume a mera reprodução de sentido, mas,
e isso sim, uma constante “construção de sentido”, que depende, logicamente,
das questões de fato (do caso concreto). Neste nível, é compreensível imaginar
o porquê de o STJ não querer questionar as conclusões do acórdão recorrido, vale
sublinhar: quando a questão controvertida gravitar em torno do requisito legal
da incapacidade do segurado para o exercício de atividade laborativa, seja pela
vertente de sua existência, de sua extensão (total ou parcial) e/ou de sua
duração (temporária ou permanente).
A prova realizada em juízo acompanha as
afirmações jurídicas extraídas de fatos essenciais[1] sem os quais não existe
“caso”, tampouco direito. O exame de uma questão de direito passa,
necessariamente, pela “qualificação” dos fatos, uma vez que estes devem ser
considerados para fazer norma frente às características do caso concreto,
enquanto compreensão hermenêutica da norma. Nessa perspectiva, Ovídio A.
Baptista da Silva conclui: “Certamente é uma verdade óbvia que a qualificação
dos fatos já é operação jurídica; cuida-se de categorizá-los através de uma
perspectiva que não é mais puramente fática, e sim jurídica”.[2]
Segundo Lenio Luiz Streck: “[...] para
hermenêutica, não faz sentido procurarmos determinar, de maneira abstrata, o
sentido das palavras e dos conceitos, como fazem as posturas analíticas de
cariz semântico, mas é preciso se colocar na condição concreta daquele
que compreende – o ser humano – para o compreendido possa ser devidamente
explicitado. E esse é o ponto fulcral!”.[3]
Ovídio Araújo Baptista da Silva, na linha
de Castanheira Neves, denuncia essa equivocada separação entre “questões de
fato” e “questões de direito”, além de defender que é “legítimo que os
tribunais dos recursos extraordinários revisem a ‘qualificação’ da prova, de
modo a determinar se, da prova existente – respeitada a sua ‘completude’ –,
fora adequada a conclusão extraída pela decisão recorrida”, sendo, por isso,
possível a reforma de uma decisão que ignorara os indícios e circunstâncias nos
autos,[4] como fez o Ministro Aldir Passarinho Júnior, no julgamento do REsp
292.543-PA:
Não se está, aqui, examinando
prova, porém constatando que a sentença singular nela penetrou profunda e
trabalhosamente, para entender pela improcedência da ação, enquanto o Tribunal,
data vênia perfunctoriamente, sem revelar quais os elementos contrários tirados
do quadro fático, chegou a posição inversa, como dito, apenas dizendo que daí
emergia prova do relacionamento amoroso entre a genitora contemporâneo à
concepção. Há, nessas circunstâncias, omissão e contradição no acórdão, que
devem ser expungidas, sob pena de cerceamento da defesa dos réus (Quarta Turma
do STJ recurso julgado em 5.12.2002, D. J. 08.09.2003, RSTJ vol. 181, p. 298).
Assim, o STJ não teria apenas competência
para examinar a qualificação dos fatos (fatos estes fornecidos pelo acórdão
recorrido), nela compreendida a apreciação da prova, mas de corrigir erros de
fato, isto é, situações onde o julgador deixa de atentar para o teor de
determinado documento ou admite como verdadeiro um fato inexistente. Nesse
sentido, ganha destaque a tese do erro evidente, que foi aplicada à unanimidade
quando do julgamento do incidente de uniformização nacional PU
0029591-96.2006.4.01.3600, Rel. Juiz Federal José Antônio Savaris, j. em
02.12.2010.[5] Trata-se, pois, de “analisar a prova para verificar o acerto de
sua valoração (de sua qualificação) [...], ainda que mediante a nova
qualificação jurídica, chegasse a uma nova conclusão sobre como os fatos teria
ocorrido”.[6] A prova precisa ser pensada como argumentação (“como argumento
para o convencimento judicial”), enfim, como objeto sobre o qual a controvérsia
judicial é construída.[7]
Tenho para mim que a decisão da Corte
Cidadã é anti-hermenêutica, por representar uma resposta antes da pergunta, com
graves consequências práticas, já que desconsidera o caso concreto.
Bah1:
RIBEIRO, Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa
julgada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo;
ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário
do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n.
9. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012. p. 87.
Bah2:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. A jurisdictio romana e a jurisdição moderna.
Disponível em: <http://www.baptistadasilva.com.br/artigos013.htm>. Acesso
em: 02 out. 2009.
Bah3:
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 37.
Bah4:
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A fundamentação das sentenças como garantia
constitucional. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: RIHJ. Porto
Alegre, v. 1, n. 4, p. 344, 2006.
Bah5:
Na espécie foi denegado direito ao benefício previdenciário de auxílio-doença
nada obstante comprovada incapacidade para o trabalho, porque a turma recursal
entendeu inexistente a qualidade de segurado (questão que até então era
incontroversa) e recusou-se a reconhecer o fato ainda quando demonstrada
cabalmente sua ocorrência mediante apresentação do CNIS, em sede de embargos
declaratórios.
Bah6:
SAVARIS, José Antônio; XAVIER, Flavia da Silva. Manual dos recursos nos
juizados especiais federais. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 197-198. Darci
Guimarães Ribeiro explica que “[...] a qualificação jurídica implica a
existência tanto de motivos (questões) de fato como de direito”. A qualificação
jurídica serve para motivar “as razões jurídicas, que se baseiam exclusivamente
nos elementos fáticos com transcendência jurídica”, e implica necessariamente a
aplicação de uma norma jurídica (“mais pertinente ao caso concreto”). RIBEIRO,
Darci Guimarães. Análise epistemológica dos limites objetivos da coisa julgada.
In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo;
ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário
do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n.
9. Porto Alegre: Liv. do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012. p. 90-91.
Bah7:
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. A fundamentação das sentenças como garantia
constitucional. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: RIHJ. Porto
Alegre, v. 1, n. 4, p. 330, 2006.
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