A "ROUPA NOVA DO REI" E O PARECER MT-SSMT Nº 085/78: O QUE FICOU PARA TRÁS?
No conto de autoria do dinamarquês Hans Christian
Andersen, um bandido, fazendo-se passar por um alfaiate de terras distantes,
diz a um determinado rei que poderia fazer uma roupa muito bonita e cara, mas
que apenas as pessoas mais inteligentes e astutas poderiam vê-la. O rei, muito
vaidoso, gostou da proposta e pediu ao bandido que fizesse uma roupa dessas
para ele.
Quando o falso tecelão mostrou a mesa de trabalho
vazia, o rei exclamou: “Que lindas vestes! Você fez um trabalho magnífico!”
Afinal, dizer que nada via seria admitir na frente de seus súditos que não
tinha a capacidade necessária para ser rei. Os nobres ao redor, igualmente,
soltaram falsos suspiros de admiração pelo trabalho do bandido.
A única pessoa a desmascarar a farsa foi uma
criança: “O rei está nu!”. O grito é absorvido por todos, o rei se encolhe e,
suspeitando ser a afirmação verdadeira, mantém-se orgulhosamente e continua a
procissão.
Foi o que aconteceu no Tema 354/TNU. Ninguém nunca viu o tal Parecer 085/78 – MT/SSMT. O resultado: “À míngua da inexistência do Parecer MT/SSMT 085/78, impossível o enquadramento especial do trabalhador em indústria têxtil exercido até a edição da Lei 9032/95 por analogia, em relação aos códigos 2.5.1 do Decreto 53.831/64 e 1.2.11 do Decreto 83.080/79, com esteio tão somente neste fictício parecer”. Apesar de mencionado em várias decisões, inclusive da própria TNU, o tal parecer não foi encontrado em lugar nenhum. Na hermenêutica trabalhamos com a ideia de que, muitas vezes, não falamos sobre o que vemos; mas vemos o que falam sobre as coisas.
Agora, não podemos perder a oportunidade de
discutir a possibilidade (ou não) do enquadramento por categoria profissional,
sem laudo técnico até 28/04/1995, de atividades exercidas em tecelagens
(indústria têxtil), vale dizer, independentemente do Parecer nº 085/78 -
MT/SSMT.
No direito previdenciário não trabalhamos apenas
com conceitos jurídicos, mas também presunções e “noções”.[1] Na aposentadoria
especial, por exemplo, existe uma presunção de incapacidade do trabalhador
(dano futuro), em razão da exposição a agentes nocivos à saúde. Ao se referir à
aposentadoria especial, o Ministro Dias Toffoli, relator do voto condutor no
Tema 709, assim verbalizou: “Trabalha-se com uma presunção absoluta de
incapacidade decorrente do tempo do serviço prestado, e é isso que justifica o
tempo reduzido para a inativação.”[2]
No enquadramento por categoria, igualmente, fica
presumida a exposição do trabalhador, de forma habitual, a agentes nocivos, em
razão do reconhecido teor de insalubridade, periculosidade ou penosidade das
atividades. No julgamento do Tema 198, a TNU fixou tese no sentido de ser
possível, até mesmo, o enquadramento, por analogia, desde que demonstrada a
semelhança das atividades.
Tratam-se de regras dirigidas ao juiz, que o
obrigam a aceitar certos fatos como provados quando ocorrem certos fatos
prévios (é ocaso das provas legal ou jurisprudencialmente tarifadas). Situação
semelhante foi discutida no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, porém,
envolvendo a função de “serviços gerais” no interior de indústrias calçadistas.
Hoje resta consolidada a orientação no sentido de ser possível o reconhecimento,
como tempo de serviço especial, notadamente até 04/1995, por conta da presunção
de exposição de tais trabalhadores a agentes químicos, mormente colas e
solventes, sendo suficiente a comprovação da função de “serviços gerais”, no
ramo calçadista.
O que mais perto interessa à problemática,
contudo, é verificar como, a partir de uma linguagem pública e/ou de uma
intersubjetividade compartilhada, foram construídos os sentidos jurídicos em
torno dessa categoria. Focando em situações já experimentas (e/ou com um alto
grau de consenso sobre), o tribunal entendeu que as presunções poderiam ser
orientadas pela (i) pela própria lei; (ii) pela prova pericial (exame, vistoria
ou avaliação); (iii) pelos documentos e (iv) pelas testemunhas. Neste nível, se
verificou que a função “serviços gerais” adquire contornos próprios,
compartilhando não apenas das mesmas atividades como dos mesmos riscos,
independente da empresa de calçados.
O mesmo se verifica para as atividades exercidas em
tecelagens (indústria têxtil). Senão vejamos.
Assim, por exemplo, sobre determinados setores da
tecelagem, tem-se o código 2.5.1. do quadro anexo do Decreto nº 53.831/64. O
código 1.2.11 do Anexo I do Decreto nº 83.080/1979 leva em conta o contato com
agentes nocivos químicos (outros tóxicos, associação de agentes) em indústrias
têxteis, nas atividades de alvejadores, tintureiros, lavadores e estampadores a
mão.
Da mesma forma, a NTEP (Nexo Técnico
Epidemiológico), um critério administrativo para caracterização dos acidentes
de trabalho pelo INSS, dispensa qualquer investigação técnica do nexo entre o
trabalho e a doença, uma vez que o acidente é configurado de forma presumida. A
Lei 8.212/91 (art. 22) agrupou as atividades por grau de risco, fixando
alíquotas variáveis entre 1%, 2% e 3% (leve, médio e grave), para o
financiamento da complementação das prestações por acidente de trabalho, a
incidir sobre o total geral de remuneração. Tal enquadramento ocorre com base
em estatísticas de acidente do trabalho, as quais precisam ser construídas com
base em inspeção (art. 22, §3º), logo, tais dados poderiam servir como
demonstração estatística da probabilidade e magnitude, este último, porque são
considerados tão-somente os acidentes que geram incapacidade laborativa, ou
seja, graves. Está-se partindo do pressuposto que existe coerência técnica nos
resultados que justificam a distribuição das alíquotas, já que o Poder Judiciário
não declarou a ilegalidade da tabela que baseou o reenquadramento das alíquotas
efetuado pelo Decreto 6.957/09.
Vale citar atividades correlatas à fabricação de
calçados, cujas empresas contribuem com a alíquota máxima de 3% (três por
cento) em razão do risco de acidente ser considerado grave: Tecelagem de fios
de algodão (1321-9/00); Tecelagem de fios de fibras têxteis naturais, exceto de
algodão (1322-7/00); Tecelagem de fios de fibras artificiais e sintéticas
(1323-5/00); Fabricação de tecidos de malha (1330-8/00); para citar apenas
estes.
Por outro lado, centenas de audiências já foram
realizadas, com a finalidade de confirmar/individualizar as atividades
efetivamente exercidas pelos trabalhadores da indústria têxtil, bem assim
descrever o meio ambiente de trabalho.
Com relação à prova documental, o parecer fornecido
pelo IBDP confirma a exposição dos trabalhadores a agentes nocivos, notadamente
ao agente físico ruído acima do limite de tolerância. Tal parecer registra
expressamente: “4 – Cabe-nos esclarecer preliminarmente que conforme tem sido
observado através do resultado de inúmeras perícias técnicas, realizadas em
decorrência de reclamações trabalhistas, os níveis de ruído nos setores de
tecelagem sempre ultrapassam a faixa de 90 decibéis.”
Tem-se, portanto, consequências deduzidas de algo
que se repete. Centenas de perícias realizadas no âmbito da Justiça de Federal,
com a comprovação da exposição dos trabalhadores a agentes químicos (e.g.:
poeira de algodão e hidrocarbonetos aromáticos). A conclusão vai, portanto, ao
encontro do senso comum, já que claro está que os trabalhadores das indústrias
têxtis estão expostos a agentes nocivos, tais como poeira de algodão, sendo
possível se falar em fatos notórios (CPC, art. 374, I).
As atividades exercidas em tecelagens (indústria
têxtil) trazem consigo uma presunção de exposição a agentes nocivos, tais como
ruído e agentes químicos (hidrocarbonetos aromáticos e poeira de algodão, sendo
possível ao julgador valer-se das regras de experiência comum (CPC, art. 375).
Para Daniel González Lagier, “entendo ‘máximas de experiência’ em um sentido
amplo, que inclui generalizações científicas, máximas derivadas do conhecimento
médio do juiz, máximas obtidas mediante sua atividade profissional etc.”[3]
Dessa forma, é possível ao julgador fornecer uma
resposta adequada, relacionando, de forma coerente, todos esses elementos.
Existem, portanto, boas razões para o julgador crer na possibilidade de
reconhecimento do tempo como especial. A ideia de aceitação também pode
iluminar a noção de standart de prova.
Seja como for, a afetação do tema, em última análise, confirma a existência de evidências sérias do labor especial, capazes de justificar, no mínimo, a necessidade-utilidade da prova pericial, devendo, portanto, ser observado o contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa - vide a segunda parte do Tema 198/TNU: "A necessidade de prova pericial, ou não, de que a atividade do segurado é exercida em condições tais que admitam a equiparação deve ser decidida no caso concreto".
A sensação é de que perdemos uma oportunidade (de avançarmos, para além do Parecer MT-SSMT Nº 085/78). Que pena.
Bah1: Segundo Eros Roberto Grau,
a operacionalização do Direito “reclama o manejo de noções, e não somente de
conceitos”. (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto.
Malheiros: São Paulo, 1996. p XVI).
Bah2: No acórdão assim restou
expresso: “Na aposentadoria especial, a presunção de incapacidade é absoluta –
tanto que, para obtenção do benefício, não se faz necessária a realização de
perícia ou a demonstração efetiva de incapacidade laboral, bastando apenas e
tão somente a comprovação do tempo de serviço e da exposição aos agentes
danosos. Nessa hipótese, a aposentação se dá de forma precoce porque o
legislador presume que, em virtude da nocividade das atividades desempenhadas,
o trabalhador sofrerá um desgaste maior do que o normal de sua saúde. Dito em
outras palavras, o tempo para aposentadoria é reduzido em relação às outras
categorias porque, ante a natureza demasiado desgastante e/ou extenuante do
serviço executado, entendeu-se por bem que o exercente de atividade especial
deva laborar por menos tempo – seria essa uma forma de compensá-lo e,
sobretudo, de protegê-lo”. (Grifo nosso). RE 791961, Relator(a): DIAS TOFFOLI,
Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL -
MÉRITO DJe-206 DIVULG 18-08-2020 PUBLIC 19-08-2020.
Bah3: LAGIER, Daniel González.
Uaestio Facti: ensayos sobre prova, causalidade e ação. São Paulo: Editora
Juspodivm, 2022. p. 123.
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