REVISÃO DA VIDA TODA: VAMOS INTERPRETAR/COMPREENDER PARA DECIDIR?
Por maioria, o Supremo Tribunal Federal (STF)
definiu que a regra de transição do fator previdenciário, utilizada para o
cálculo do benefício dos segurados filiados antes da Lei 9.876/1999, é de
aplicação obrigatória. Prevaleceu o entendimento de que, como a Constituição
Federal veda a aplicação de critérios diferenciados para a concessão de
benefícios, não é possível que o segurado escolha uma forma de cálculo que lhe
seja mais benéfica.
Em sua manifestação, o Ministro Cristiano Zanin
verbalizou: “Não me parece possível que, com a declaração da
constitucionalidade, essa regra de transição possa ser de natureza optativa, e
não cogente”.
De fato, o que tem força vinculativa, cogente, é o Direito (que não cabe na lei). Agora, é possível o julgador aplicar uma regra sem antes interpretar?
A resposta, obviamente, é negativa.
No primeiro artigo que publiquei, após o STF
chancelar a tese da “revisão da vida toda”, disse que tal decisão representava
uma “conquista hermenêutica”, vale dizer: contra uma aplicação mecânica das
regras (o método silogístico/subsuntivo). Mantenho a minha opinião sobre a
decisão do STF no Tema 1.102. E daí o estranhamento em relação à decisão
proferida na ADI 2.110 – que, por via reflexa, acaba com a revisão.
Antes de qualquer outra coisa, cumpre esclarecer
que o que se discute aqui é o direito dos segurados, filiados ao RGPS antes do
advento da Lei 9.876/99, de ampliar o período básico de cálculo com a inclusão
de salários de contribuição anteriores a julho de 1994, quando mais vantajoso,
é claro. A Lei 9.876/1999 mudou a sistemática de apuração do cálculo dos
benefícios de aposentadoria, determinando a observação, para fins de
salário-de-benefício, da média aritmética simples dos maiores
salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período
contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário, o que tem aplicação para
os filiados do RGPS a partir de 29.11.1999. Para os já filiados ao sistema, o
art. 3º, caput, trouxe uma regra de transição, consistindo o
salário-de-benefício na média simples dos maiores salários-de-contribuição
correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido
desde a competência julho de 1994, além do que se dominou chamar de “mínimo
divisor” (§ 2º).
Não é mera coincidência, mas a tese da “vida toda”, no sentido de se considerar
toda a vida contributiva do segurado, nasceu – também – como uma alternativa
para se tentar afastar a aplicação do “mínimo divisor”, que, em alguns casos,
pode ser pior do que o fator previdenciário – uma relativização do §2º do art.
3º da Lei 9.876/1999. Fica fácil entender o porquê disso: para o segurado que
possuir menos de 60% de contribuições entre julho/1994 e o mês anterior a data
de início do benefício, o divisor considerado no cálculo será de 60% de todo o
período, atribuindo-se o valor ficto de zero até completar essa fração.
Dito isto, vamos ao que interessa. Não se pode
discutir o direito do segurado optar por uma regra ou outra sem antes saber o
que é uma regra de transição. Se eu não tenho essa pré-compreensão, a tese da
“vida toda” sequer se coloca para mim. Segundo Lenio Streck; “Para interpretar,
necessitamos compreender; para compreender, temos de ter uma pré-compreensão,
constituída de estrutura prévia de sentido – que se funda essencialmente em uma
posição prévia (...), visão prévia (...) e concepção prévia”.[1]
A tradição no direito pátrio revela a necessidade
de períodos de transição para que toda e qualquer mudança no ordenamento
normativo seja implementada pouco a pouco. Tais regras também servem para
proteger uma expectativa de direito. Assim, as regras de transição existem para
atenuar os efeitos das novas regras aos segurados já filiados ao regime, e
nunca – jamais – para prejudicar. Nesse sentido, há que se fazer uma
reconstrução consistente do instituto.
A compreensão que se tem das regras de transição
aponta para a sua aplicação facultativa diante de uma regra atual mais
vantajosa. A regra de transição, como tal, somente deve ser aplicada se a regra
nova for mais prejudicial ao segurado. Ou seja, se a média aritmética simples
dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de
todo o período contributivo (regra nova) resultar em um salário-de-benefício
maior que a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes
a oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a
competência julho de 1994 a partir de julho de 1994 (regra de transição),
deve-se aplicar a nova regra.
Numa comparação entre segurados que se filiaram
antes e depois da edição da Lei 9.876/1999, em condições semelhantes de
aposentadoria, é possível se chegar a um valor de aposentadoria (RMI) muito
diferente. Isso porque o segundo poderá contar com as contribuições de uma vida
toda e, o primeiro, não. O primeiro, tomado de assalto pela mudança legislativa
– que acaba com a hipótese de contar com a média dos 36 últimos salários de
contribuição, apurados dentro de um período não superior a 48 meses –, contará
apenas com as contribuições vertidas após 07/1994 até a Data de Entrada do
Requerimento da aposentadoria, mesmo que com falhas na contribuição ou
salários-de-contribuição mais baixos.
É claro que é difícil essa comparação. É importante
sublinhar que, quando se fala “em contar com as contribuições de uma vida
toda”, para os filiados após a publicação da Lei 9.876/1999 isso significa
contar com salários a partir de 29/11/1999, e não desde julho de 1994 ...e não
anteriores a julho de 1994.
Além da mudança abrupta no Período Básico de
Cálculo (PBC), tem-se, cumulativamente, a aplicação do mínimo divisor e do
fator previdenciário. Isso mesmo, o fator previdenciário é aplicado aos
segurados filiados antes 29/11/1999, mas não se dá a eles a opção de uma
aplicação integral do art. 29, I, da Lei 8.213/1991, com o aproveitamento de
toda vida contributiva. Uma incoerência do legislador agora chancelada por uma
decisão judicial.
Cumpre, então, perguntar: Como uma regra de
transição, que tem por objetivo atenuar as consequências nocivas da nova lei,
pode ser obrigatória para aqueles cuja mudança é mais vantajosa?
Não precisamos do judiciário para apenas declarar a
lei – como a tradução direta de um texto em língua estrangeira –, mas, e isso
sim, para interpretar a regra, no caso concreto. Modernamente, está muito claro
que não se pode centrar e restringir a discussão acerca da interpretação de
determinado dispositivo à análise dos termos nele contidos (literal), pois isso
implicaria reduzir o processo interpretativo à mera tradução (do “juridiquês”
para o “português”) dos termos contidos no texto. Segundo Castanheira Neves: “a
realização concreta do direito não se confunde com a mera aplicação de normas
pressupostas, embora possa ter nessas normas os seus imediatos critérios”.[2]
A orientação seguida pelo Ministro (nas ADI's 2.110 e 2.111)
traduz uma tentativa de determinar o sentido do texto de maneira abstrata,
razão pela qual a interpretação sempre espatifa no texto de lei, no plano
apofântico. A dimensão da faticidade, os princípios constitucionais, a
compreensão do que seja uma regra de transição ...tudo isso ficou de fora.
Parte-se da chamada “igualdade perante a lei”, uma igualdade meramente formal,
diga-se de passagem, para justificar que, doa a quem doer, a lei não faz
distinções.
Não se pode subjugar todas as situações a uma mesma
categoria, negligenciando acontecimentos individuais em que a aplicação da
regra de transição é mais prejudicial do que a regra atual – não só porque isso
contraria a lógica de uma regra de transição. A decisão deve abarcar a
complexidade do mundo prático (social) e trazer para dentro da aplicação do
direito os princípios da igualdade, da coerência, da integridade do direito,
para citar apenas estes. É claro que devemos aceitar distinções arbitrárias sobre
certas questões, mas rejeitamos essa “loteria” quando o que está em jogo são
questões de princípio.
As regras de transição não têm como finalidade
salvar alguns, mas, como se viu, atenuar as consequências tão-somente negativas
da nova lei. Os critérios estabelecidos pela nova lei, esses sim, traduzem uma
opção legislativa, podendo prejudicar ou beneficiar os segurados filiados após
29/11/1999.
Tais aspectos demonstram a incapacidade dessas
logísticas, silogística e subsuntiva, que a interpretação toma dentro do
positivismo jurídico, por não serem suficientes para prestarem as respostas que
a realidade previdenciária exige e necessita. Não é importante citar os
diversos opositores da utilização da lógica formal do Direito para se perceber
o descrédito pela orientação exegética, sobretudo, por ser considerada
insuficiente para compreender e explicar o fenômeno decisório.[3]
Mas voltando. O artigo 122 da Lei 8.213/1991 nos dá
a certeza de que o direito adquirido – princípio que fundamenta a regra em foco
– assegura ao segurado o benefício com RMI mais vantajosa diante qualquer
mudança no ordenamento normativo jurídico, devendo-se observar as regras (mais
favoráveis) vigentes na época e/ou a partir do cumprimento dos requisitos
ensejadores da aposentadoria.
No julgamento do RE 630.501/RS, o Supremo Tribunal
Federal foi além. Ao dizer que o segurado tem direito a escolher o benefício
mais vantajoso, “conforme as diversas datas em que o direito poderia ter sido
exercido”, restou claro que o direito adquirido preserva – também – situação
fática já consolidada mesmo ausente modificação no ordenamento jurídico.[4] Uma
coisa é o direito adquirido em razão das mudanças no ordenamento jurídico (1998
ou 1999); outra, bastante distinta, é o direito adquirido em razão do melhor
mês para o segurado se aposentar. No meio dessa diferenciação (e não cisão)
está o direito ao melhor benefício ao qual o segurado faz jus, a partir do
preenchimento os requisitos ensejadores do benefício. Na prática, o segurado,
mesmo filiado antes 29/11/1999, que preencher os requisitos ensejadores do
benefício, na vigência da Lei 9.876/1999, tem direito de optar pela concessão
do benefício nos termos dessa última, com a consideração de todos os
salários-de-contribuição.
O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema, inclusive no que diz respeito da função das regras de transição, no Agravo Regimental no RE 524189. Oportuna a transcrição do seguinte trecho da decisão proferida pelo Min. Teori Zavascki: "Considerando essas circunstâncias, não assiste razão ao STJ ao decidir que, se o embargante sequer havia preenchido as condições para a concessão da aposentadoria proporcional, não faria jus à aposentadoria integral, já que a regra geral do art. 201, § 7º, I, da CF/88 afigura-se mais favorável aos segurados. No caso, as instâncias de origem assentaram que o embargante totalizou tempo de contribuição equivalente a 35 (trinta e cinco) anos e 26 (vinte e seis) dias, fazendo jus, assim, à aposentadoria integral prevista no art. 201, § 7º, I, da Constituição Federal."[5]
Ali se disse a coisa mais prosaica do mundo: é
evidente que o segurado pode optar pela não aplicação de regra de transição
mais gravosa que a regra geral, e isso vale para a tese da “vida toda”. Dali
pra frente deveria ser observado o princípio da coerência, sugestão de caráter
dworkiniano incorporada no art. 926 do CPC, que visa garantir uma isonômica
aplicação principiológica.[6]
Conduzindo assim o pensamento, pretende-se sustentar que, uma vez compreendido o fenômeno representado pelas regras de transição e do próprio direito adquirido (à luz da jurisprudência com DNA Constitucional), fica fácil apontar o equívoco cometido pelo STF - que ainda poderá ser desfeito! No mais, a melhor reposta não encontra ressonância na ideia de “tudo ou nada”, nesse dualismo cartesiano.
Não se fez possível, nestes poucos caracteres, deitar tinta sobre a doutrina legal estabelecida desde os primórdios (ou "escavar o chão linguístico", como já vi dizer o Professor Lenio Streck), com especial atenção para as regras de transição no direito
previdenciário. Seja como for, devemos analisar o instituto à luz
do novo paradigma de Estado Democrático de Direito, sustentado não apenas no
pressuposto liberal da confiança, cuja expressão fundamental é a antecipação
das regras do jogo, mas na construção de uma estrutura normativa capaz de dar
conta da concretização dos direitos fundamentais-sociais.
É verdade, o Supremo Tribunal Federal colocou um fim na chamada revisão “da vida toda”. Agora, o que é visto como um fim amargo para muitos segurados/aposentados representa, por outro lado, uma oportunidade para refletirmos sobre a aplicação do Direito (que não é igual à lei). Mais do que isso, precisamos falar sobre os “predadores externos” do Direito, tais como argumentos morais, econômicos e políticos, como há muito tempo o professor Lenio Streck vem denunciando. Não podemos admitir que as (possíveis) consequências de uma decisão determinem o próprio direito, sob pena dos direitos fundamentais não serem garantia de nada. Decidir por princípio é não ser consequencialista - assim como o lema mandaloriano: "Como deve ser"!
Somente perderemos se depois
de tudo isso não fizermos uma reflexão profunda sobre o papel do judiciário
...sobre o que é o Direito?
São muitas as críticas contra o STF, das quais pouco ou nada consigo extrair para um debate sério sobre o tema ...desde bobagens do tido "vontade do legislador", passando por argumentos de justiça, até ataques pessoais - o que reclama uma crítica da crítica. Oportunidade perdida, uma pena. Ah, eu não poderia deixar de comentar: a sensação é de que o debate se perdeu com a comercialização da tese. Às vezes, holofotes cegam mais do que iluminam (HG)!
__________________________________
Bah1: STRECK. Lenio Luiz.
Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria geral do
direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Casa do
Direito, 2017. p. 97.
Bah2: NEVES, Antonio
Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra.
1993. p. 25.
Bah3: NOJIRI, Sérgio. O dever de
fundamentar as decisões judiciais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 76-80.
Bah4: APOSENTADORIA – PROVENTOS
– CÁLCULO. Cumpre observar o quadro mais favorável ao beneficiário, pouco
importando o decesso remuneratório ocorrido em data posterior ao implemento das
condições legais. Considerações sobre o instituto do direito adquirido, na voz
abalizada da relatora – ministra Ellen Gracie –, subscritas pela maioria. RE
630501, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2013,
DJe-166 DIVULG 23-08-2013 PUBLIC 26-08-2013 EMENT VOL-02700-01 PP-00057 (Grifo
nosso).
Bah5: Essa decisão assim restou
ementada: PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. ART. 9º DA EC
20/98. INAPLICABILIDADE. REGRA DE TRANSIÇÃO MAIS GRAVOSA QUE A NORMA GERAL
PREVISTA NO ART. 201, § 7º, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 35 (TRINTA E CINCO)
ANOS DE CONTRIBUIÇÃO. REQUISITO PREENCHIDO. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO ACOLHIDOS, COM EFEITOS INFRINGENTES. (RE 524189 AgR-ED, Relator(a):
Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 09/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
DJe-184 DIVULG 30-08-2016 PUBLIC 31-08-2016).
Bah6: O direito como integridade
“é tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto a sua
inspiração”, o que reclama dos juízes uma interpretação contínua do mesmo
material, mesmo depois de já tê-lo interpretado com sucesso. DWORKIN, Ronald. O
império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 273.
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