NOVO REGIME DE FORMAÇÃO DA COISA JULGADA: VAMOS DEIXAR O TEXTO DIZER ALGO DE NOVO?

 

O CPC/2015 instituiu um novo regime de formação dinâmica da coisa julgada, com a possibilidade de a coisa julgada material alcançar questões prejudiciais – que interferem no deslinde da questão principal –, o que fica claro no art. 504, já que, ao repetir a regra do art. 469 do Código de 1973, o novo diploma deixou de fora “a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”, como uma das hipóteses que não fazem coisa julgada.

Em uma ação de concessão de pensão por morte, a questão principal é o direito do dependente ao benefício previdenciário. A questão incidental consistirá nos fundamentos da decisão, nas questões que, porventura, o juiz precise decidir para chegar à solução da causa como, por exemplo, a condição de companheira (união estável) com o segurado. Agora, não há questão que seja por natureza principal ou incidental. A questão prejudicial de filiação na ação de alimentos poderá ser a questão principal na ação investigatória de paternidade. Por outro lado, no controle difuso de constitucionalidade, a questão da constitucionalidade sempre será prejudicial, enquanto que, no concentrado, sempre principal.

Trazendo a “novidade” para o Direito Previdenciário, fica fácil perceber que nos autos de uma ação de concessão de pensão por morte, a discussão acerca da existência (ou não) união estável entre instituidor e o dependente é prejudicial. Da mesma forma, numa ação de concessão de aposentadoria por tempo de contribuição, o reconhecimento de um vínculo empregatício.

Mas não vamos parar por aqui. A Turma Nacional de Uniformização, no julgamento do Tema 213, colocou a discussão sobre a eficácia do EPI como uma questão prejudicial. A didática da exposição e a fundamentalidade do tema justificam a longa transcrição:

6. Possibilidade de análise da eficácia do E.P.I. como questão prejudicial no processo previdenciário. No julgamento da causa previdenciária, o Juiz não declara a nulidade do PPP, não condena o empregador a preencher novo formulário, tampouco dá qualquer comando direcionado ao acertamento da relação trabalhista. O Juiz Federal se limita a analisar se há direito à aposentadoria. No percurso lógico para formar seu convencimento, é possível que o julgador seja obrigado a avaliar as questões trabalhistas, não para julgá-las, mas, tão somente, para extrair as conclusões necessárias à avaliação do direito previdenciário. Trata-se, apenas, de uma questão prejudicial, como tantas outras com as quais os magistrados se deparam em diferentes processos.

7. Por outro lado, a questão prejudicial não afeta a competência para julgamento da causa. A necessidade de avaliar uma questão trabalhista para resolver uma controvérsia previdenciária não afasta a competência da Justiça Federal. De acordo com o art. 503, § 1º, III do Código de Processo Civil, a incompetência do juízo para resolver a questão prejudicial apenas afeta a extensão da coisa julgada, mas não impede o julgamento da causa. Afirmar que o segurado está impedido de acessar a Justiça para corrigir uma ofensa ao direito de se aposentar, porque antes deve buscar solucionar a questão trabalhista, parece uma afronta direta ao art. 5º, XXXV da CF. O fato de existir a necessidade de enfrentar uma questão prejudicial, não pode servir de impedimento ao acesso à Justiça.

Defendemos que essa orientação deve ser aplicada a toda e qualquer discussão sobre o formulário PPP. Tomamos como exemplo a alegação de que o PPP omite os agentes químicos ao quais esteve exposto o segurado/trabalhador (esse constitui o ponto controvertido). Trata-se, como já se viu, de um documento produzido fora do processo, pela empresa, o qual não goza de presunção de veracidade legal ou lógica. Nesses casos, o segurado ajuíza uma ação previdenciária, buscando demonstra o labor especial por outros meios de prova, notadamente pela prova pericial – indispensável para o julgamento da lide.

Na hipótese do juiz se recursar a aplicar os laudos por semelhança, indeferir a prova pericial e, simultaneamente, julgar improcedente o pedido, vale dizer: com fundamento na ausência de dados que poderiam ser supridos pela prova pericial, cumpre perguntar: É possível se afirmar que o autor fracassou na demonstração do fato constitutivo de seu direito? O autor pôde participar do procedimento em contraditório? O juiz teve condições de declarar, de forma definitiva e/ou minimamente segura, a inexistência do direito alegado?

A essa altura já conseguimos cruzar os pontos. A ausência/insuficiência de provas justifica a extinção do feito, sem resolução de mérito, com fundamento no Tema Repetitivo 629/STJ. Por outro lado, o novo CPC trouxe expressamente o que pode fazer coisa julgada no art. 503, § 2º: “não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial”. O que se pretende sustentar ao longo do artigo – e antecipo desde já – é que o Tema 629/STJ deve ser conjugado com o art. 503, § 2º, do CPC.

Diante do indeferimento da prova pericial, a questão se resolveria mais facilmente em termos processuais, pela aplicação da orientação espelhada na tese firmada no REsp 1.352.721/SP. Na medida em que o juiz não pode postergar sua decisão na espera de melhores provas ou informações, há que se ter maior tolerância no que diz respeito à garantia da coisa julgada. Agora, este não é o aspecto principal da discussão. Pelo contrário. Defendendo aquilo que não pode fazer coisa julgada, chamamos a atenção para o respeito ao contraditório  enquanto garantia de influência e não surpresa. O processo deve assegurar ao autor tudo aquilo que lhe é de direito, como é o caso da prova pericial. O processo que não observa o devido processo legal não esgota as promessas de uma jurisdição constitucional. 

Para Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, se “o juiz não tem condições de conhecer os fatos adequadamente, isto é, com cognição exauriente, para fazer aplicar sobre esses uma norma jurídica, não é possível a imunização da decisão judicial, derivada da coisa julgada.” Também a doutrina de Ricardo Alexandre da Silva: “A diretriz para a extensão da coisa julgada, também nesse ponto, é a existência de debate aprofundado sobre a questão. Essa premissa traz importantes impactos na análise das demandas em que a cognição é parcial, ou seja, restrita a determinada matéria.”

Normalmente, os juristas são influenciados pelo paradigma na qual estão inseridas e ninguém, em condições normais, pensa além de seu tempo – ainda estamos presos no CPC/1973. A inovação possível dentro de um mesmo paradigma é sempre superficial e nunca sequer toca o aspecto principal. A questão do novo regime de formação dinâmica da coisa julgada passou batida ou, para alguns, seu conteúdo pareceu aparentemente óbvio e, portanto, irrefletido – nós não refletimos sobre o que achamos óbvio! Ainda não refletimos sobre as consequências do art. 503, § 2º, do CPC, uma pena.

O dispositivo em questão nada mais representa – e, por isso, muito – do que um novo referencial para a configuração da coisa julgada. O presente artigo não trata apenas do novo, como propõe uma (re)leitura do velho a partir de uma interpretação hermenêutica do novo regime de formação dinâmica da coisa julgada. 

 

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Bah1: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 585.

Bah2: SILVA, Ricardo Alexandre da. A nova dimensão da coisa julgada. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 251.


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