O PRAZO DECADENCIAL NA REVISÃO DA “VIDA TODA”
Não, sem dúvidas, expressões como “a cada um o que
é seu”, “o direito não socorre aos que dormem”, enfim, constituem standars
retóricos obsoletos e que não deveriam ser utilizados em matéria
previdenciária.
Com relação à revisão da “vida toda”, não posso
aceitar que a decadência seja aplicada de modo acrítico, com Cronos devorando
seus filhos à vontade. É verdade que os temas até agora julgados pelas
instâncias superiores (313/STF, 966 e 975/STJ, para citar apenas estes) deixam pouco
espaço para a chamada “actio nata”, quer dizer, mesmo que a tese tenha se
tornado juridicamente viável somente agora, com o selo jurídico do STF. Os
debates travados durante o julgamento do Tema 1102 sugerem que tudo é
aproximado, negociação entre querer e poder, quer dizer, na perspectiva dos
impactos econômicos da decisão e sua aceitação – embora não se concorde que
as consequências de uma decisão possam determinar o próprio Direito –, a
decadência fez parte do acordado.
No entanto, aqui, precisamos considerar a diferença
entre uma tese e uma simples (re)interpretação da lei. É possível verificar que
a tese chancelada pelo Supremo Tribunal Federal é fruto de uma construção. Neste
nível, se somente agora se possui certeza sobre tal possibilidade, não é
razoável admitir a fluência do prazo extintivo em momento anterior.
Por outo lado, admitindo-se que a revisão decorre
de expressa previsão legal, poder-se-ia cogitar a não incidência do prazo
decadencial, assim como aconteceu com as revisões do IRSM[1], do buraco negro, tetos
estabelecidos pelas Emendas 20/1998 e 41/03, para citar apenas estas., em razão
da própria autarquia admitir, ainda que anos mais tarde, o dever de recompor os
valores, pagando as diferenças devidas (mas eu serei rápido nessa parte). Aqui
se poderia colocar a tese da “vida toda” dentro do grupo das revisões de
direito, mas a partir do rótulo de “revisão compulsória”. Lembrei que no
Tribunal Regional Federal da 4ª Região existem decisões no sentido de que a
mera retificação dos salários de contribuição não pode sequer ser compreendida
como revisão do ato de concessão[2]. No entanto, o que se tem como certo é que
ela (a decadência) não se aplica às revisões de reajustamento (IN INSS/PRES
77/2015, art. 565).
Tudo isso é uma discussão válida. Agora eu gostaria
de examinar, para terminar, a decisão – que declarada uma lei
(in)constitucional – na perspectiva de uma relação jurídica de trato
continuado, quer dizer, preocupa a questão do tratamento igualitário – exemplos
não faltam em matéria tributária. Hipoteticamente, poderíamos, sim, pensar nos
prejuízos que se renovam a cada nova mensalidade de um benefício concedido sem
observância da regra mais benéfica. Trata-se, pois, de dar uma nova perspectiva
à relação jurídica de trato sucessivo, não necessariamente para fins
rescisórios, mas para fins de contagem do prazo decadencial.
No Tema 313/STF, a questão da igualdade foi
resolvida fixando-se a seguinte tese: “II – Aplica-se o prazo decadencial de
dez anos para a revisão de benefícios concedidos, inclusive os anteriores ao
advento da Medida Provisória 1.523/1997, hipótese em que a contagem do prazo
deve iniciar-se em 1º de agosto de 1997.” Ainda, restou estabelecido, na
própria ementa do julgado, que o direito à previdência social não se sujeita a
prazo decadencial, sendo a concessão do benefício propriamente dito o exercício
deste direito fundamental:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO
PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS). REVISÃO DO ATO DE
CONCESSÃO DE BENEFÍCIO. DECADÊNCIA. 1. O direito à previdência social constitui
direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição,
não deve ser afetado pelo decurso do tempo. Como consequência, inexiste prazo
decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário. 2. É
legítima, todavia, a instituição de prazo decadencial de dez anos para a
revisão de benefício já concedido, com fundamento no princípio da segurança
jurídica, no interesse em evitar a eternização dos litígios e na busca de
equilíbrio financeiro e atuarial para o sistema previdenciário. 3. O prazo
decadencial de dez anos, instituído pela Medida Provisória 1.523, de
28.06.1997, tem como termo inicial o dia 1º de agosto de 1997, por força de
disposição nela expressamente prevista. Tal regra incide, inclusive, sobre
benefícios concedidos anteriormente, sem que isso importe em retroatividade
vedada pela Constituição. 4. Inexiste direito adquirido a regime jurídico não
sujeito a decadência. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido.
A regra de direito utilizada como fundamento (ratio
decidendi) aponta para as súmulas do STF e STJ que tratam da incidência da
prescrição quinquenal de parcelas vencidas no âmbito previdenciário:
Súmula 443/STF: “a prescrição das prestações
anteriores ao período previsto em lei não ocorre quando não tiver sido negado,
antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que
ele resulta”.
Súmula 85/STJ: “Nas relações jurídicas de trato
sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido
negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações
vencidas antes do quinquênio anterior à propositura da ação”.
É verdade, no Tema 313/STF, a discussão
principiou com a certeza de que não havia decadência para benefícios concedidos
antes da MP 1.523-9, 27/06/1997. Não obstante, o STF declarou não apenas incidir
a decadência como cravou o seu início a partir de 1º de agosto de 1997.
Dá inexistência ao seu transcurso antes mesmo de se tornar enfim o que é!
As mudanças no sistema normativo também são
consideradas como ponto de partida como, por exemplo, os requerentes
considerados absolutamente incapazes até 2 de janeiro de 2016, ou seja, a própria
Instrução Normativa do INSS, no seu art. 591, § 3º, estabelece que “os prazos
de prescrição e decadência passam a correr a partir de 3 de janeiro de 2016,
início da vigência da Lei 13.146, de 2015, que alterou o Código Civil”. A RTV
não decorre de uma mudança no sistema normativo, mas os efeitos da decisão do
STF se comparam a uma alteração do estado de direito.
Para aquilo que pretendo propor aqui, de fato, a
melhor solução seria admitir que o direito nasceu com a decisão do Supremo
Tribunal Federal, tomando-se o trânsito em julgado dessa decisão como termo
inicial do prazo decadencial. Se é razoável admitir que a integralização do
direito material só ocorre após o trânsito em julgado em relação a uma ação
trabalhista (Tema 1157), o que dirá para uma tese que dependia da
jurisprudência previdenciária e, em última análise, da chancela do STF para se
tornar juridicamente viável.
Deve ter ficado claro, a incidência da decadência
condena o beneficiário a suportar – sozinho – todo o ônus da demora - que não é
sua! Reconhecer a decadência, quando não havia decisão final do Poder
Judiciário (o reconhecimento de tal direito), inverte totalmente a finalidade
da norma. Não se aperfeiçoa o suporte fático previsto no art. 103 da Lei nº
8.213/1991, se a administração não cumpre o dever de decidir o pedido de
revisão do benefício [2], logo, o mesmo deveria valer aqui. Não? Note-se que
tal direito ainda não é reconhecido pelo INSS, vale dizer: na via administrativa!
Como já se viu, escrevo para tentar entender,
escrevo porque não me conformo com certas coisas, enfim, simplesmente escrevo,
mas sei que, a julgar pelo que já decidiram os tribunais superiores, a
decadência vai incidir também na revisão da “vida toda”. Em respeito ao sistema
de precedentes, que cobra coerência e integridade do Direito (CPC, art. 926), a
decadência deverá incidir na RTV. Agora, quando se diz “isso não é
possível” já antevemos o possível!
Bah1: A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região
uniformizou-se no sentido de considerar a data de vigência da Medida
Provisória n. 201, publicada em 26/07/2004, mais adiante convertida na Lei
10.999, como o termo inicial da contagem do prazo decadencial do direito de
revisão do salário-de-benefício pela inclusão do IRSM de fevereiro de 1994, na
atualização monetária dos salários-de-contribuição. (TRF4
5044385-82.2013.4.04.7100, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado
aos autos em 09/02/2020)
Bah2: PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO. DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA.
RETIFICAÇÃO DE SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO. 1. Acompanhando o Superior Tribunal de
Justiça (REsp 1.309.529 PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em
28/11/2012, DJe 04/06/2013), esta Turma consolidou o entendimento de que incide
o prazo decadencial para os benefícios concedidos antes da MP 1.523-9/1997. 2.
A mera retificação do salário de contribuição perante o INSS não pode ser
compreendida como revisão do ato de concessão, fato que afasta a incidência da
decadência no caso concreto. (TRF4, AC 0013546-27.2015.404.9999, SEXTA TURMA,
Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, D.E. 20/03/2017, grifo nosso).
Bah3: É
impensável a aplicação da decadência no caso concreto, na pendência de uma
definição por parte do INSS. Deve-se, aqui, reconhecer a inércia do INSS:
PREVIDENCIÁRIO. DECADÊNCIA. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DO DIREITO À
REVISÃO DO ATO DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 103 DA LEI Nº
8.213/1991. AUSÊNCIA DE DECISÃO ADMINISTRATIVA. 1. O prazo de decadência
previsto no art. 103 da Lei nº 8.213/1991 aplica-se somente à revisão de
benefício já concedido, conforme a interpretação dada pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento do RE 626.489 (Tema nº 313). 2. O entendimento de que o
prazo decadencial não é interrompido pela apresentação de pedido de revisão no
âmbito administrativo não se mostra adequado à moldura legal do instituto dada
pelo art. 103 da Lei nº 8.213/1991. 3. Se o segurado provoca a administração
para obter a revisão do ato de concessão do benefício, há o exercício do
direito substancial que afasta a decadência, caso a data do requerimento seja
anterior ao prazo de dez anos, contado do dia primeiro do mês seguinte ao do
recebimento da primeira prestação. 4. Caso o pedido administrativo seja
indeferido, somente resta a possibilidade de obter a revisão do benefício na
via judicial, incidindo nessa hipótese a parte final do art. 103 da Lei nº
8.213/1991, que determina a contagem do prazo de decadência a partir da data de
notificação da decisão indeferitória definitiva. 5. Não se aperfeiçoa o suporte
fático previsto no art. 103 da Lei nº 8.213/1991, se a administração não cumpre
o dever de decidir o pedido de revisão do benefício. 6. Reconhecer a
decadência, quando não houve decisão final de indeferimento do pedido de
revisão do ato de concessão do benefício, inverte totalmente a finalidade da
norma, já que a inércia da administração só lhe traria efeitos favoráveis.
(TRF4, AC 5000977-14.2019.4.04.7138, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado
aos autos em 06/07/2020). (realcei).
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