OTELO, O MOURO DE VENEZA: A PROVA NO JEF (“SEM CONTRADITÓRIO, TUDO É POSSÍVEL”)

 

Otelo, o Mouro de Veneza (no original, Othello, the Moor of Venice) é uma peça de teatro de William Shakespeare escrita por volta do ano 1603. A história gira em torno de quatro personagens: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza), sua esposa Desdêmona, seu tenente Cássio, e seu suboficial Iago.[1] A peça problematiza temas variados – racismo, amor, ciúme e traição. Uma trama perfeita!

Na obra de José Roberto de Castro Neves, intitulada “Medida por medida: o Direito em Shakespeare”, o autor toma emprestada a peça de teatro de William Shakespeare para problematizar a questão da prova, do julgamento sem maiores análises, da apreciação dos fatos pelas aparências – algo muito familiar para os advogados que atuam nos Juizados Especiais Federais. Eis o que faremos também, porém, na perspectiva exclusiva da prova em matéria previdenciária.

Otelo “é um homem prático, rude, guerreiro, acostumado aos julgamentos de exceção, sempre muitos rápidos, como os que ocorrem nas batalhas: matar ou morrer, sem maiores análises dos fatos e das circunstâncias.”[2] Na peça, Otelo ama Desdêmona, com quem casa – contrariando a vontade do pai da noiva (Brabâncio). É importante destacar que a questão do amor entre os dois foi levada ao doge de Veneza. Brabâncio acusa Otelo de seduzir sua filha: “Minha questão não é coisa de pouca importância. O próprio Doge, assim como qualquer um dos meus pares na administração do Estado, não pode deixar de sentir esse crime como se fosse contra sua própria pessoa. Se a ações tais for dada livre passagem, logo chegará o dia em que escravos e pagãos tornam-se nossos governantes.”[3] Durante o julgamento, contudo, Desdêmona confessa que entrou de livre vontade no namoro com Otelo.

A história segue. Otelo tem um capitão, o fiel Cássio. Abaixo dele, Iago é preterido na promoção de carreira. Iago despreza tanto Otelo como Cássio.[4] Ao longo da trama, o pérfido Iago conduz Otelo ao ciúme infernal e enlouquecedor.[5] Primeiro, Iago arma uma cilada, usando Rodrigo para provocar uma briga com Cássio, a quem embebedara. Diante da confusão, Otelo de pronto dispensa Cássio.[6] Seu julgamento foi sumaríssimo: “Otelo não aprecia os fatos com profundidade, não se inteira das peculiaridades da situação de Cássio. O julgamento é imediato, sumário, sem contraditório, como ocorre nas guerras, que são o universo de Otelo.”[7]

Iago ataca exatamente aquilo que Otelo acredita como suas fraquezas, fazendo-o duvidar da fidelidade de sua esposa. No microssistema dos juizados especiais, alguns querem fazer acreditar que a mínima intervenção jurisdicional implica reconhecer a redução das oportunidades de manifestação e de inconformismo,[8] sendo possível, até mesmo, o juiz ignorar o núcleo duro do processo civil (a instrução processual), que traduz importantes garantias processuais constitucionais, mormente do contraditório enquanto garantia de influência e não surpresa.[9]

É interessante como Iago diz uma coisa para atingir outra – algo como afirmar que o formulário faz prova da especialidade de determinando período, querendo desacreditar os períodos para os quais o mesmo documento não comprova o labor especial. De cara, é importante esclarecer que aquilo que o formulário PPP beneficia o segurado numa coisa não exclui em outra. O nível de ruído superior a 80 dB, na vigência do Dec. 53.831/64, pode garantir o enquadramento de alguns períodos, mas é direito do segurado impugnar as informações fornecidas pela empresa, com fundamento na omissão quanto aos agentes químicos e, até mesmo, o que diz respeito ao nível de ruído, com vistas à realização de prova pericial ou aplicação de laudo por semelhança. Em poucas palavras, não se trata de alegar que só é verdadeiro o que convém.

Mas voltando à história. Nos dias que se seguiram, Otelo alimenta o mostro da desconfiança. Nesse ínterim, Iago obtém um lenço que pertence a Desdêmona e o coloca na posse de Cássio.[10] Otelo toma esse fato como prova definitiva de deslealdade de sua mulher. “Nesse objeto, o lenço, nessa única prova, Otelo firma sua convicção.” Tal como ocorre no JEF, o formulário PPP produzido fora do processo é tomado como prova definitiva da inexistência de agentes nocivos. Não à toa, a peça já foi chamada de “A Tragédia do Lenço”.[11] Oportuna a transcrição do diálogo entre Iago e Otelo:

IAGO – Não; seja mais esperto. Ainda não vimos nada. Ela ainda pode ser honesta. Diga-me apenas uma coisa: o senhor não viu, às vezes, nas mãos de sua esposa, um lenço com um bordado de moranguinhos:

OTELO – Presenteei-a eu mesmo com um lenço assim; foi o primeiro mimo que lhe dei.

IAGO – Disso eu não estava a par. Todavia, um lenço assim ... tenho certeza de que era de sua esposa ... vi Cássio usando hoje para enxugar a barba.

OTELO – Se for o mesmo lenço....

IAGO – Se for o mesmo leno, ou qualquer outro que tenha sido dela, isso depõe contra ela, juntamente com as outras provas.

OTELO – Ah, se tivesse essa escrava quarenta mil vidas! Uma só é muito pouco, frágil demais para minha vingança! Agora vejo que é verdade. Olha: aqui, Iago, todo o meu amor apaixonado, assim eu o sopro aos céus ...e já se foi. Levanta-te, vingança negra, de tua cela oca. Abre caminho, oh, amor, cede tua coroa e trono que tens no coração a um ódio tirano! Incha, peito meu, com tua carga, pois ela pensa língua de áspides.[12]

O diálogo marca o momento em que a mente perturbada do Mouro encontra a confirmação que precisava. A partir daqui Otelo não mudaria mais de ideia sobre a traição de Desdêmona. Mais tarde, Otelo joga na cara de Desdêmona: “Por Deus, eu vi meu lenço na mão dele. Ah, mulher falsa! Tu apedrejas meu coração e me fazes chamar de assassino o que tenciono fazer, que antes eu pensava ser um sacrifício. Eu vi o lenço!”[13] Abre-se um parente para registrar o modo como rótulos assim funcionam, ou seja, como suposições que se confirmam. Ao rotularmos as pessoas, agimos com elas de um modo que instiga o próprio comportamento que nos incomoda, que então consideramos uma confirmação da avaliação que fizemos.[14] Em Albert Camus: “Não tenho necessidade de cavar mais adiante. Uma única certeza é suficiente àquele que procura. Trata-se apenas de lhe extrair as consequências todas.”[15]

Iago é chamado de honesto várias vezes, enquanto Desdêmona é qualificada como prostituta. Contudo, Iago não é honesto, nem Desdêmona é uma prostituta. Já se viu a demonização do segurado e seu advogado em alguns processos!

O poeta explora muito bem as ambiguidades, as incertezas e as fragilidades de uma análise superficial, como fica claro nessa citação: “O diabo pode citar a escritura para os seus propósitos”. Argumentos sem condição de verificabilidade. Não está incorreto dizer que o formulário “não apresenta inconsistências”. A inexistência de agentes nocivos não pode ser conhecida a priori (assim como 2 + 2 = 4), pois depende do caso concreto, a partir de uma investigação de como as coisas são. A prova pericial visa atestar, de forma ponderada, a credibilidade de um formulário produzido fora do processo judicial. A prova pericial é imprescindível sempre que demonstradas evidências sérias do labor especial – a partir da adoção de um padrão de dúvida relevante. Se dissermos que “chove lá fora”, esse enunciado pode ser falso ou verdadeiro, ou seja, devemos olhar para fora ...o juiz deve deferir a prova pericial!

José Roberto de Castro Neves captura bem a imagem: “o demônio defende sua posição tomando a Bíblia por fundamento. Eis, então, o convite ao intérprete: pense, analise as circunstâncias, reflita. A interpretação, que precede o julgamento, depende dessa inteligência.”[16] Assim como na peça, a mente turvada por provas débeis serve para um veredito desastroso, que enterra vivo o direito do segurado, já que a ele não foi oportunizada a participação do procedimento em contraditório. Otelo acaba por matar sua amada, asfixiando-a com as próprias mãos, numa morte sem grito e sem sangue: “ela deve morrer, para que não venha a trair mais homens”.[17]

Temos na história inúmeros exemplos de condenações sem chance de contraditório. A Inquisição foi oficialmente inaugurada pelo Papa Gregório IX, em 1233, ao anunciar a criação de um tribunal que deveria punir, com o máximo rigor, quaisquer indivíduos que cometessem heresias – estas entendidas ao bel-prazer dos inquisidores. “As vítimas – às vezes, dezenas de uma vez – eram amarradas a postes de madeira, em cujas bases colocavam piras de lenha e feixes de palha. A depender da sentença, a igreja, num gesto último de caridade, estrangulava o herege antes de lança-lo às chamas”.[18]

Deve ter ficado claro: Otelo é vítima de seus julgamentos precipitados, dando pouco ou falso valor às evidências, contentando-se com rótulos apresentados. É inútil afirmar que o ônus da prova é do segurado, querendo desacreditar as evidências sérias do labor especial, com a recusa aos laudos aplicados por semelhança e o indeferimento da prova pericial. O impulso de pôr fim ao processo nos leva a um julgamento antecipado da lide, condenando o segurado sem dar oportunidade de defesa – como se não existisse instrução processual –, o que constitui não apenas verdadeira restrição ao direito de prova, mas ao próprio acesso à justiça, tornando evidente a ausência de jurisdição.

Otelo nunca deu à Desdêmona a oportunidade de se defender. Em que provas Otelo se fundou para chegar ao veredito de que sua mulher era infiel? Concretamente num lenço que acabou nas mãos de Cássio. O segurado acosta aos autos um formulário padrão, por força de uma exigência legal que vincula a administração, sabendo que ele não reproduz com exatidão a realidade laboral vivenciada pelo trabalhador (e.g.: ele omite agente nocivos não previstos nos decretos previdenciários ...eletricidade, penosidade), razão pela qual ele tenta estabelecer o contraditório sobre as informações nele estampadas, postulando a prova de natureza testemunhal e pericial. A partir daí, o juiz, sem maiores reflexões, conclui pela suficiência do PPP.

Oferecido o PPP, uma prova pré-constituída, o segurado deve ter condições de impugná-lo, explicá-lo, trazer outra prova que desqualifique ou que dê contexto. Ao autor precisa ser garantida a participação no processo e o poder de influência. O juízo precisa da instrução para verificar a ocorrência dos fatos alegados. “Sem contraditório, tudo é possível”.[19]

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021.

Bah2: NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 295.

Bah3: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 25.

Bah4: Iago para Rodrigo: “[...] odeio o Mouro [Otelo]. Meus motivos têm raízes no coração; os seus têm tanta razão de ser quantos os meus. Vamos agir em conjunto na nossa vingança contra ele. Se você conseguir presenteá-lo com um par de chifres, estará presenteando a si mesmo com um prazer e a mim com um divertimento. Há muitos eventos na barriga prenhe das horas, e eles têm de ser paridos. Em frente! Marcha!” SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 40.

Bah5: Momentos antes da dúvida ser plantada em sua mente, Otelo diz: “Por que, por que isso agora? Pensas que eu levaria uma vida de ciúmes, seguindo mesmo as mudanças da lua com sempre novas suspeitas? Não; uma vez só ficasse eu em dúvida, e o assunto estaria de uma vez resolvido. [...] Pois ela tinha olhos, e escolheu a mim. Não, Iago. Preciso ver antes de dúvidas. Quando eu duvidar, precisarei de provas. E, uma vez fornecida a prova, não há nada além disso: o fim simultâneo do amor e do ciúme”. Mais adiante: “Por este mundo que nos abriga, ora penso que minha esposa é honesta, ora penso que não. Ora penso que tu és justo, ora penso que não. Preciso de provas.” SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 86-87; 95.

Bah6: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 68.

Bah7: NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 298.

Bah8: SAVARIS, José Antonio; XAVIER, Flavia da Silva. Manual dos recursos nos juizados especiais federais. 5. ed. rev. atual. – Curitiba: Alteridade Editora, 2015.

Bah9: No âmbito dos Juizados Especiais Federais essa flexibilização recai sobre corolários do devido processo legal (processo justo), definido pela Constituição e densificado pelo Código de Processo Civil 2015, como se os critérios simplificantes previstos no art. 2º Lei 9.099/95 (oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade) pudessem prevalecer sobre os princípios do contraditório, da ampla defesa ou da fundamentação das decisões judiciais.

Bah10: Desdêmona deixa o lenço cair por descuido. Emília, esposa de Iago, encontra-o no chão. Iago sempre mostrou interesse no lenço, pedindo a Emilia que o surrupiasse. No entanto, Emília não sabia o que Iago pretendia fazer com o lenço. SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 91.

Bah11: HARRIS, Jonathan Gil. Untimely Matter in the Time of Shakespeare. Faladélfia: University of Pennsylvania Press, 2009. p. 176.

Bah12: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 97-98.

Bah13: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 153.

Bah14: ROSENBERG, Marshal. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2021. p. 108.

Bah15: CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Disponível em: <http://revistapandorabrasil.com/.../camus_sisifo...>. Acesso em 06 ago. 2022.

Bah16: NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 300.

Bah17: SHAKESPEARE, William. Otelo. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 150.

Bah18: MELLER, Lauro. Iron Maiden: uma jornada através da história. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018. p. 63-64.

Bah19: NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 304.


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