DIREITO PROCESSUAL PREVIDENCIÁRIO: O PEDIDO DE PROVA PERICIAL NÃO PODE SER ANALISADO AO GOSTO DO JUIZ

 

O Professor Lenio Luiz Streck acertou de novo, o motivo do indeferimento da prova não pode ser simplesmente o fato de a lei (CPC, art. 370, parágrafo único) autorizar o juiz a indeferir diligências irrelevantes, com o sequestro do caso concreto: “Se o juiz pode indeferir porque acha irrelevante e o STF diz que o juiz está autorizado a isso, o resultado é que nunca saberemos se, no caso, as provas eram irrelevantes. Mas, outra vez, indago: O que é isto — a prova "irrelevante"?”

Apesar da exigência de fundamentação no caso de o juiz indeferir alguma diligência inútil ou meramente protelatória, ela não pode ter como pretexto “contudo, foi juntado PPP, que foi preenchido sem inconsistências, bem como foi devidamente assinado pelo responsável” Trata-se, como denuncia Lenio Streck, de uma frase pronta, capaz de afastar a preliminar de cerceamento de defesa em qualquer processo, sem compromisso com o caso concreto, já que não será possível atestar, de forma ponderada, a credibilidade de um formulário produzido fora do processo judicial.

A análise do cerceamento de defesa não passa pela avaliação dos aspectos formais do formulário, já que eles não geram qualquer consenso acerca da real situação do labor do segurado/trabalhador. Essa é uma simplificação muito grande e perigosa. A partir de um laudo incorreto, incompleto ou inadequado, a empresa consegue emitir um formulário PPP sem qualquer inconsistência, isto é, devidamente preenchido e com indicação do responsável pelos registros ambientais. Os agentes nocivos aos quais estão expostos inúmeros trabalhadores não se importam com um formulário esteticamente bonito, com indicação de EPI eficaz – o segurado não está magicamente protegido! No entanto, um formulário plasticamente bem preenchido tornou-se sinônimo de prova absoluta da não comprovação do labor especial. O erro, o perigo, é elevar essa fundamentação a um discurso prévio de justificação, isto é, para, por si só, indeferir a prova pericial.

O fascínio pelo “livre convencimento” é retroalimentado por um discurso sem contexto ou caso concreto: "[...] é porque o juiz pode indeferir, ele pode indeferir. E se as instâncias decidiram que deveriam indeferir, nada pode ser feito. Resumidamente, é assim: 1. O fato de o juiz indeferir diligência não é cerceamento; 2. Isto porque o CPP autoriza que o juiz indefira; 3. Se o juiz diz que a diligência é irrelevante, é impossível discutir o mérito da relevância porque isso é rediscutir prova; 4. Se o juiz assim o faz, é pelo seu livre convencimento. Causa finita." 

A prova pericial é irrelevante até que seja feita. Depois ela será importante para justificar o reconhecimento (ou não) do tempo especial, porquanto produzida com respeito ao contraditório. Não está incorreto dizer que o formulário “não apresenta inconsistências”. O problema é que pode, no caso concreto, ser absolutamente falsa a presunção de que o formulário reproduz com exatidão a realidade laboral vivenciada pelo trabalhador. 

A inexistência de agentes nocivos não pode ser conhecida a priori (e.g.: 2 + 2 = 4), pois depende do caso concreto, a partir de uma investigação de como as coisas são. O segurado precisa da instrução para constatar a verdade das suas alegações. A prova pericial é imprescindível sempre que demonstradas evidências sérias do labor especial, logo, algo é conhecível apenas a posteriori. Se dissermos que “chove lá fora”, esse enunciado pode ser falso ou verdadeiro, ou seja, devemos olhar para fora ...o juiz deve deferir a prova pericial! Não há como se atestar, de forma atenta e ponderada, a credibilidade do formulário sem olhar para além do PPP “preenchido sem inconsistências, bem como devidamente assinado pelo responsável”. 

Cria-se, como defende Lenio Streck, uma aporia. O advogado defende que a prova pericial é indispensável, enquanto o juiz diz que a documentação é suficiente (para negar o direito). Em segunda instância e/ou nas instâncias superiores, a resposta é de que o juiz é livre para decidir o que são diligências inúteis. Na fundamentação, o juiz não faz qualquer distinção, simplesmente, escondendo o caso concreto. Neste nível, de nada adianta recorrer ou alegar “cerceamento de defesa”, afinal, o “livre convencimento” ... 

Ocorre que CPC/2015 acabou com o livre convencimento (artigo 371) e, ainda, introduziu a exigência de coerência e integridade (artigo 926). A justificativa sugerida por Lenio Streck e acatada pelo Deputado relator foi a de que 

embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado ‘coparticipação’, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade de superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte de juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.[2]

O tema do cerceamento de defesa, desde, sobretudo, a concepção de um processo previdenciário, ganhou uma transcendência própria, por ser a prova pericial e testemunhal condição de possibilidade para o conhecimento do tempo de serviço especial. Não obstante, no exercício de suas funções, alguns juízes não encontram limites nas garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo (legal ou previdenciário). O direito à prova é refém de uma "subjetividade assujeitadora", que dá ao conceito de cerceamento de defesa o sentido que convém e transforma a justiça numa "justiça lotérica".

Ninguém discorda que “o mero contato com cimento não caracteriza a atividade especial”. Porém, isso acontece no caso concreto? Na linha do que defende Lenio Streck: “Hermeneuticamente, a crítica vai no sentido de que a dogmática acaba transformando verbetes em enunciados assertóricos, com caráter universalizante. Frases prontas que, justamente porque não têm contexto, servem para qualquer um.” Assim se constrói uma jurisprudência defensiva, utilizada como instrumento para diminuir pilhas de processos e desincentivar o advogado a ajuizar sua ação no JEF.

 

Escrito por Diego Henrique Schuster

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Bah1: STRECK, Lenio Luiz. STF erra ao fazer jurisprudência que atinge REsp sobre prova pericial In: Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 18 jan. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/.../stf-erra-jurisprudencia...>. Acesso em: 19 jan. 2022.

Bah2: STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Ano 52 Número 206 abr./jun. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/206/ril_v52_n206_p33.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2022.


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