REVISÃO DE DIREITO: SOMA DE SALÁRIOS-DE-CONTRIBUIÇÃO EM RAZÃO DE ATIVIDADES CONCOMITANTES

 

Aqui a metáfora do hermeneuta pode ser útil para se compreender e aproximar o leitor da proposta:


Nela um hermeneuta chega a uma ilha e lá constata que as pessoas cortam (desprezam) a cabeça e o rabo dos peixes, mesmo diante da escassez de alimentos. Intrigado, o hermeneuta foi buscar as raízes desse mito. Descobriu, finalmente, que, no início do povoamento da ilhota, os peixes eram grandes e abundantes, não cabendo nas frigideiras. Consequentemente, cortavam a cabeça e o rabo. Hoje, mesmo que os peixes sejam menores que as penas, ainda assim continuam a cortar a cabeça e o rabo.

Compreendeu assim o fenômeno que se encobria aos moradores mais jovens da ilha, os quais, ao serem questionados o porquê de agirem dessa maneira, respondiam: “Não sei... Mas as coisas sempre forma assim por aqui”! Eis o senso comum. Eis a naturalização de uma prática.[1]

O que se pretende mostrar com isso? A necessidade de o intérprete perquirir o horizonte histórico posterior à produção da lei. A distância temporal é um importante elemento hermenêutico para “desarticular as camadas de sentido inautênticas que constituem o horizonte de sentido”. É o que Gadamer chama de “fusão de horizontes”[1].

A partir da compreensão de tal conceito é fácil perceber que o que antes justificava a impossibilidade de somar os salários-de-contribuição não se sustenta mais. Senão, vejamos:

O salário-de-benefício do segurado que contribui em razão de atividades concomitantes é calculado de acordo com o artigo 32 da Lei 8.213/1991:

 

Art. 32. O salário-de-benefício do segurado que contribuir em razão de atividades concomitantes será calculado com base na soma dos salários-de-contribuição das atividades exercidas na data do requerimento ou do óbito, ou no período básico de cálculo, observado o disposto no art. 29 e as normas seguintes:

I - quando o segurado satisfizer, em relação a cada atividade, as condições do benefício requerido, o salário-de-beneficio será calculado com base na soma dos respectivos salários-de-contribuição;

II - quando não se verificar a hipótese do inciso anterior, o salário-de-benefício corresponde à soma das seguintes parcelas:

a) o salário-de-benefício calculado com base nos salários-de-contribuição das atividades em relação às quais são atendidas as condições do benefício requerido;

b) um percentual da média do salário-de-contribuição de cada uma das demais atividades, equivalente à relação entre o número de meses completo de contribuição e os do período de carência do benefício requerido;

III - quando se tratar de benefício por tempo de serviço, o percentual da alínea ‘b’ do inciso II será o resultante da relação entre os anos completos de atividade e o número de anos de serviço considerado para a concessão do benefício.

§ 1º O disposto neste artigo não se aplica ao segurado que, em obediência ao limite máximo do salário-de-contribuição, contribuiu apenas por uma das atividades concomitantes.

§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo ao segurado que tenha sofrido redução do salário-de-contribuição das atividades concomitantes em respeito ao limite máximo desse salário.

 Segundo tal dispositivo, não é viável a soma dos salários-de-contribuição das atividades exercidas ao mesmo tempo quando, em relação a uma delas, o segurado não tiver preenchido os requisitos ensejadores do benefício requerido. Assim, da atividade com menos tempo de contribuição (secundária) será considerada apenas uma pequena fração do salário-de-contribuição. Acontece que, à época da edição da Lei de Benefícios, a aposentadoria era calculada com base nos trinta e seis (36) últimos salários-de-contribuição. Com efeito, era possível ao segurado planejar o valor da sua aposentadoria, observados os limites da escala transitória de salários base, utilizada para fins de enquadramento e fixação do salário-de-contribuição dos contribuintes individual e facultativo, e que foi extinta em 1º/04/2003.

Exemplificando: ao segurado que estava na iminência e/ou já tinha preenchido os requisitos para pedir a sua aposentadoria era possível contribuir em outra atividade durante os 36 meses que antecediam o requerimento, para ver somado todos os salários-de-contribuição. Por óbvio, tal “manobra” – apesar de legal – era prejudicial à Previdência Social, uma vez que o valor do benefício acabava por não traduzir a vida contributiva do segurado.

Com a edição da Lei 9.876/1999 (artigos 2º e 3º), o critério de cálculo das aposentadorias sofreu profundas mudanças, entre elas, o salário-de-benefício para os novos benefícios passou a ser calculado com base na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário, e a criação de uma regra de transição para os segurados que já estavam inscritos no RPGS, até 26 de novembro de 1999, estabelecendo para estes um Período Básico de Cálculo (PBC) de julho/1994 até a Data de Entrada do Requerimento (DER).

Como se vê, houve um aumento do PBC e, consequentemente, do número de salários-de-contribuição a serem considerados no cálculo do benefício previdenciário. Tal mudança encerrou um anacronismo sobre os critérios contidos no artigo 32 da Lei 8.213/1991, mormente no que diz respeito ao inciso II e suas alíneas, uma vez que ele não mais se presta para o fim que se destinava. Em poucas palavras, como o salário-de-benefício passou a ser apurado sobre todas as contribuições a partir de julho de 1994, para os segurados já filiados ao sistema, ou do início da vida contributiva, para os novatos, não há mais como o segurado contribuir de “última hora” ou na “reta final” para alavancar o valor do seu benefício.

Além disso, o fator previdenciário também interfere na relação entre o que se paga e o que se recebe. Assim, as variantes idade e expectativa de sobrevida refletem diretamente no resultado da equação. Note-se que a expectativa de vida constitui um agente que pode frustrar todo o planejamento do segurado, vez que ele pode controlar a idade e tempo de contribuição, mas fica à mercê do IBGE.

Por tudo isso, os salários-de-contribuição devem ser sempre somados no cálculo do salário-de-benefício (“para se formar um único salário-de-benefício”), independentemente de ter a atividade concomitante maior ou menor número de contribuições à Previdência [2]. O que conforta tal entendimento e demonstra sua viabilidade é o artigo 28 da Lei 8.212/1991, com redação emprestada pela Lei 9.528/1997, ao dispor sobre o que se entende por salário-de-contribuição no seu inciso I, in verbis:

 

I - para o empregado e trabalhador avulso: a remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.

 Conforme deixa clara a redação do dispositivo em foco, o salário-de-contribuição se resume à soma das remunerações que o segurado recebe durante o mês, independentemente do número de vínculos empregatícios concomitantes e/ou se as atividades por ele exercidas são diferentes, uma vez que o desconto previdenciário ocorre, nos limites máximo e mínimo, sobre a totalidade dos rendimentos recebidos pelo trabalho realizado. Cumpre verificar que a EC 20/98 ratifica o caráter contributivo do sistema previdenciário brasileiro.

Uma vez que o passado (a regra dos últimos 36 últimos salários-de-contribuição) é incapaz de orientar/iluminar o futuro, faz-se necessário romper com os preceitos concebidos a partir de uma realidade superada para, com isso, deixar que o artigo 32 da Lei de Benefícios diga algo novo (contemporâneo), à luz do ideário vigente, considerando aqui a vinculação entre regras e princípios[3], pois o princípio não “deixa a regra se desvencilhar do mundo prático”[4]. O princípio que comanda o artigo 32 e dele exige uma (re)leitura constitucional é o da reciprocidade das contribuições ou da contrapartida, ou seja, a relação entre o que se paga e o que se recebe.

Algumas novidades na jurisprudência confirmam um verdadeiro desvelamento e descongelamento de sentidos.

A primeira delas, para benefícios concedidos a partir de 1º/04/2003 não cabe mais o cálculo de atividade concomitante. Em suma, há de se fazer a soma dos salários-de-contribuição, respeitado o teto de contribuição[5]. Aqui se observou a escala transitória de valores, em razão da contribuição como contribuinte individual. Tratando-se de segurado empregado (com dois ou mais vínculos), a derrogação do art. 32 da Lei 8.213/1991 pode ser considerada desde a Lei 9.876/1999[6]. Segunda, “[...] o tempo de contribuição do segurado é um só, ou seja, o tempo somado na atividade principal, assim não há razão para que o fator previdenciário seja diferente”[7]. Terceira e última, pelo mesmo motivo, não se aplica o divisor mínimo no cálculo das atividades secundárias [8].

A TNU fixou, no julgamento do tema 167, a seguinte tese: “O cálculo do salário de benefício do segurado que contribuiu em razão de atividades concomitantes vinculadas ao RGPS e implementou os requisitos para concessão do benefício em data posterior a 01/04/2003, deve se dar com base na soma integral dos salários-de-contribuição (anteriores e posteriores a 04/2003) limitados ao teto”. A Lei 13.846/2019, que converteu a MP nº 871/2019 em lei, consolidou a correta metodologia de cálculo.[9]

 

Bah1: STRECK. Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria geral do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Casa do Direito, 2017, p. 81.

Bah2: LEMES, Emerson Costa. Atividades concomitantes ou simultâneas na previdência social. Curitiba: Juruá, 2015, p. 191.

Bah3: Fábio Konder Comparato, fazendo uma distinção prévia entre princípios e regras, aduz: “Os princípios são normas de extrema generalidade e abstração, em contraste com as regras, cujo conteúdo normativo é sempre mais preciso e concreto. Na verdade, a função social das regras consiste em interpretar os princípios, à luz do ideário vigente, em cada época histórica, nas diferentes culturas e civilizações”. (COMPARATO,Fábio Konder. Ética: direito moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 510) .

Bah4: STRECK, Lenio Luiz. A resposta hermenêutica à discricionariedade positivista em tempos de pós-positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008, p. 288-289.

Bah5: TRF4, EINF 5007039-68.2011.404.7003, TERCEIRA SEÇÃO, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 10/03/2016.

Bah6: Emerson entende que o mero fato de a Lei 8.212, desde a sua redação original (24.7.1991), conceituar o salário-de-contribuição como sendo o somatório de todos os rendimentos, já é suficiente para que tal intepretação se estenda por todo o período, não apenas de 1º.04.2003 ou de 26.11.1999. (LEMES, Emerson Costa. Atividades concomitantes ou simultâneas na previdência social. Curitiba: Juruá, 2015, p. 190).

Bah7: Em poucas palavras, “o fator previdenciário, em se tratando de atividades concomitantes, deve incidir uma única vez, apenas após a soma das parcelas referentes à atividade principal e secundária”. (TRF4, AC 5015983-20.2015.404.7100, QUINTA TURMA, Relator FRANCISCO DONIZETE GOMES, juntado aos autos em 12/07/2017).

Bah8: TRF4, APELREEX 5002376-61.2011.404.7202, Sexta Turma, Relator Roger Raupp Rios, juntado aos autos em 04/04/2014.

Bah9: “Art. 32. O salário de benefício do segurado que contribuir em razão de atividades concomitantes será calculado com base na soma dos salários de contribuição das atividades exercidas na data do requerimento ou do óbito, ou no período básico de cálculo, observado o disposto no art. 29 desta Lei.”

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