O princípio da precaução diante da ausência de regulamentação e incertezas: a busca de uma orientação operacional em matéria previdenciária



Para evitar que o princípio da precaução fique apenas no discurso, é necessário definir as diretrizes mínimas capazes de atribuir alguma certeza relativa ao seu conteúdo e, sobretudo, à sua aplicação no caso concreto.[1]

            Em primeiro lugar, a questão tem como base um pensamento complexo. O desenvolvimento do conhecimento produz novas incertezas e aporias. Assim, o significativo aumento de complexidade e incerteza na sociedade contemporânea demonstra a necessidade de uma nova abordagem (também) pelo direito, como estratégia de ampliar o acesso e a utilização do maior número possível de informações, de integrá-las e, enfim, de “formular esquemas de ação e de estar apto para reunir o máximo de certeza para enfrentar a incerteza”,[2] com proposição para a gestão dos riscos abstratos. A hipercomplexidade da sociedade pós-industrial atrai uma estrutura metodológica transdisciplinar para a compreensão das questões que envolvem os novos e desconhecidos riscos (abstratos).

Convém, em seguida, esclarecer que não devemos falar em precaução, prevenção; enfim, em proteção do trabalhador a partir de uma abordagem que acusa as empresas de buscarem apenas lucros, ou seja, que desprestigia toda e qualquer dimensão ética das teorias econômicas, como fica claro no pensamento de Amartya Sen. Escolhas éticas podem ser lucrativas; logo, o autointeresse pode coincidir com a intenção e a consciência do indivíduo, no sentido de querer proteger a saúde e integridade física do trabalhador.

A discussão acerca da precaução tem, como recorte descritivo, os riscos desconhecidos. Tomamos, como exemplo, a nanotecnologia. Não existe hoje conhecimento científico suficiente de como os nanomateriais irão afetar os trabalhadores das indústrias, os cidadãos, outras espécies e ecossistemas. Neste contexto, pois, tornar-se necessário aplicar o Princípio da Precaução.

 

Precaução quer dizer tomar cuidado. Esse princípio deve ser aplicado quando há risco de danos graves ou irreversíveis, decorrentes de atividades humanas que ainda não são claramente entendidas, e que o estágio de desenvolvimento atual da ciência não consegue avaliar adequadamente (a falta de provas não prova que não há riscos). Tem a função primordial de evitar riscos e a ocorrência de danos ambientais e à saúde, preservando melhor qualidade de vida para as gerações presentes e futuras, já que pode ser impossível reparar esses danos.[3]

 

                Esta forma de encarar o problema (“A falta de provas não prova que não há riscos”) não é a receita que procuramos. Essa proposição poderia incentivar o abandono do princípio da precaução. Explico. Esse argumento concorre para uma (re)interpretação do princípio: já que não existem provas nem metodologias para avaliar os riscos, então tudo é precaução (e “se tudo é nada é”). Essa distorção poderia insinuar uma inversão não apenas do ônus da prova, mas também que a concessão de aposentadoria especial é uma proteção exagerada ou desproporcional ao segurado, sempre que inexistir prova da inexistência do risco. Délton Winter de Carvalho lembra do que restou estabelecido pela Comissão das Comunidades Europeias:

 

O recurso ao princípio da precaução pressupõe que: a) se identifiquem os efeitos potencialmente perigosos decorrentes de um fenômeno, de um produto ou de um processo; e b) haja uma avalição científica dos riscos que, devido à insuficiência dos dados, não podem ser determinados com suficiente segurança.[4]

 

            Acontece que os estudos relativos aos possíveis efeitos dos nanomateriais justificam a preocupação com os trabalhadores que manuseiam, fabricam, empacotam ou transportam mercadorias, alimentos ou insumos agrícolas que contêm nanomateriais, já que eles enfrentam uma exposição repetitiva e em níveis mais elevados que a população em geral. Em 2009, o painel de especialistas da Agência Europeia para Segurança e Saúde no Trabalho identificou que as partículas nano (e as ultrafinas) são o principal risco à saúde nos locais em que se trabalha com elas.


Alguns nanomateriais e seus possíveis efeitos:

Nanopartículas – podem provocar reações de inflamação nos tecidos do corpo

Nanopartículas de carbono – podem penetrar no cérebro pela mucosa do nariz

Nanopartículas de prata, de dióxido de titânio, de zinco e de óxido de zinco – usadas em suplementos nutricionais, embalagens para alimentos e materiais que entram em contato com alimentos, apresentam alta toxicidade para células em estudos feitos em tubos de ensaio. Testes de laboratório também mostraram que nanopartículas de óxido de metais podem penetrar nas células e danificar o DNA.

Nanocompostos – podem chegar à corrente sanguínea por inalação ou ingestão, e alguns podem penetrar pela pele. São capazes de atravessar membranas biológicas e atingir células, tecidos e órgãos que partículas maiores não conseguem. Podem flutuar no ar, viajando por grandes distâncias. Como na sua maioria são novos compostos, que não existem na natureza, os danos ainda não podem ser avaliados. É possível que eles se acumulem na cadeia alimentar da mesma forma que os metais pesados.

Fulerenos de carbono – podem, rapidamente, causar danos cerebrais em peixes; interferem na coagulação do sangue em coelhos; um teste com ratos mostrou comportamento de amnésia nos animais expostos. Em testes in vitro, mostrou que apenas 1 hora depois, os fulerenos foram capazes de aumentar a oxidação em tecidos expostos. Por apresentarem grande área superficial, são altamente reativos e podem formar radicais livres.

Nanotubos de carbono – são solúveis na água e, portanto, podem ser ingeridos. Estudos mostram que eles se comportam como as fibras de asbesto (ou amianto). Na Austrália, Reino Unido e Suíça há solicitação de cientistas e seguradoras para aplicar o princípio da precaução no manejo desses nanotubos, devido aos riscos à saúde.[5]

 

Há, como já se viu, uma infinidade de agentes químicos ainda em estudo e que podem provocar (ou que já estão provocando) um enorme prejuízo à saúde dos trabalhadores que ficam expostos a eles, em ambientes insalubres e desprotegidos. As legislações referentes à saúde no trabalho não consideram as nanopartículas como novos químicos. Em relação a esses agentes não se conhece qual o nível de exposição capaz de afetar a saúde e/ou seguro. Assim, como não se conhece os limites seguros de exposição, só restam medidas paliativas de proteção, como, por exemplo, recomendar o uso de luvas – o que parece excluir a obrigação de fiscalização do INSS.

Nesse conflito de interesses, os governantes têm deixado que as empresas e as instituições se autorregulem, encontrando conforto no argumento de que é impossível regulamentar algo que ainda não se conhece; ou seja, vamos “esperar para ver” – e, assim, a referência ao dano assume o lugar da precaução, tornando-se aceitável. O amianto é exemplo de outro “maravilhoso” material que deu errado e, ainda hoje, é responsável pela morte de pessoas, por causar um tipo de câncer de pulmão.[6]

No âmbito judicial, Délton Winter de Carvalho destaca: “As estratégias de decisão para lidar com esta condição (incerteza), sob um padrão precaucional, frequentemente, ensejam reflexões sobre a distribuição dinâmica do ônus da prova, a avaliação da persuasão probatória e a configuração metodológica dos fatores de incerteza científica.”[7]

Por óbvio, a falta de regulamentação de tais agentes invisíveis não pode ser um obstáculo para a aplicação do princípio da precaução; mas, dentro desse espaço, torna necessária tal aplicação. Nesse ponto, oportuna a crítica à Teoria do Fato Jurídico, proposta por Pontes de Miranda, no sentido de que “[...] somente o fato que esteja regulado por norma jurídica pode ser considerado um fato jurídico, ou seja, um fato gerador de direitos, deveres, pretensões, obrigações ou de qualquer outro efeito jurídico, por mínimo que seja”.[8] Nesse sentido:

 

Ocorre que esse tratamento jurídico aos fatos tem notória origem ou espelho no modelo positivista de Hans Kelsen – fato=ato jurídico ou antijurídico+norma, e na Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda, sobretudo no suporte fático. Ambas as doutrinas fixam regras fechadas e rígidas para que o fato social seja considerado um fato jurídico, condicionando seu tratamento jurídico aos planos da existência, da validade e da eficácia.[9]

 

Essa concepção não atinge apenas o Direito Privado, mas também o Direito Público; e, nesse aspecto, merece (necessárias) críticas por deixar inúmeros segurados sem proteção social, até mesmo no caso de riscos conhecidos.

Em matéria previdenciária, nem a ausência de provas diretas acerca dos riscos gerados pelas nanotecnologias à saúde do trabalhador nem a falta de regulamentação podem ser motivos para se descartar medidas antecipatórias, como a aposentadoria especial, que tem, por excelência, fundamento nos princípios da prevenção/precaução. Provas indiciárias poderão servir para a formação de um juízo de análise a respeito da existência de provável ocorrência de um dano futuro e da sua magnitude (grave ou irreversível) e justificarem, assim, a declaração jurisdicional de exposição a agentes efetivamente nocivos.[10] 

Escrito por Diego Henrique Schuster



[1] Wilson Engelmann destaca os setores que se utilizam da escala manométrica para a produção de bens: [...] energia, agropecuária, tratamento e remediação de água, cerâmica e revestimentos, naval e automotivo, siderurgia, odontológico, têxtil, cimento e concreto, microeletrônica, diagnóstico e prevenção de doenças e sistemas de direcionamento de medicamentos”. ENGELMANN, Wilson. O diálogo entre as fontes do direito e a gestão do risco empresarial gerado pelas nanotecnologias: construindo as bases à judicialização do risco. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 9. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2012. p. 322.

[2] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 193.

[3] Nanotecnologia: a manipulação do invisível. Centro Ecológico, 2009. Disponível em: <http://www.centroecologico.org.br/novastecnologias/novastecnologias_1.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2020. Numa promoção da ASA Brasil e da Rede Ecovida de Agroecologia, o Centro Ecológico, com apoio e colaboração de entidades parceiras, produziu a revista Nanotecnologia – A manipulação do invisível, com o objetivo de disponibilizar informações sobre o desenvolvimento técnico e comercial da nanotecnologia e seu impacto na agricultura, na alimentação e na saúde, bem como as consequências sociais, ambientais e econômicas de sua utilização.

[4] CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017. p. 197.

[5] Nanotecnologia: a manipulação do invisível. Centro Ecológico, 2009. Disponível em: <http://www.centroecologico.org.br/novastecnologias/novastecnologias_1.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2020.

[6] Nanotecnologia: a manipulação do invisível. Centro Ecológico, 2009. Disponível em: <http://www.centroecologico.org.br/novastecnologias/novastecnologias_1.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2020.

[7] CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017. p. 202.

[8] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. XXVII.

[9] ENGELMANN, Wilson; GÓES, Maurício de Carvalho. Direitos das nanotecnologias e o meio ambiento do trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 142.

[10] Délton Winter de Carvalho utiliza essa expressão ao defender a importância de critérios valorativos que atuem como “sensores cognitivos”. Tais critérios acabam por facilitar o processo de conhecimento das informações científicas ou técnicas, desencadeando um processo de ponderação das provas a partir da relação entre credibilidade científica e validade jurídica. CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos probatórios do dano ambiental futuro: uma análise sobre a construção probatória da ilicitude dos riscos ambientais. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; CALLEGARI, André Luís (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado: n. 8. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2011. p. 86.  

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