COISA JULGADA EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA: ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA DECISÃO PADRÃO



Ao invés de arrancar o particular do universal e considerar as peculiaridades da lide previdenciária, o julgador aposta na abstratalidade, que permite múltiplas respostas e afasta a fundamentação do mundo prático e do próprio Direito. Nesse andar, é possível se dizer qualquer coisa (exagerada) como, por exemplo, se o segurado esteve exposto a sete agentes nocivos diferentes, ele vai escolher um deles e, se a ação for julgada improcedente, uma nova ação será cabível, ou, ainda, o objetivo do segurado é poder ajuizar quantas demandas forem necessárias para satisfazer sua pretensão. Em tese – e num mundo onde se brinca com o direito à proteção social dos segurados –, sim, essa possibilidade é ilimitada!
Isso permite ao julgador substituir os critérios racionalistas de análise por procedimentos empíricos e/ou utilitaristas: “a se permitir essa frouxidão na coisa julgada material, a multiplicação exponencial de demandas é certa e as relações previdenciárias jamais se estabilização – exceto, claro, quando a autarquia, esgotada, perder –, quiçá em prejuízo da própria sustentabilidade da Previdência Social”. (PUIL Nº 5000532-53.2014.4.04.7014/PR).[1]
Na verdade, tais argumentos escondem razões pessoais, ou melhor, problemas de ordem prática como, por exemplo, um possível aumento no número de demandas. As consequências práticas da decisão acabam determinando o próprio direito. Não só isso. Assim é possível se negar aqueles casos em que o direito foi “enterrado vivo”, isto é, não foi possível ao segurado demonstrar o seu direito, porquanto negada a juntada de algum documento ou indeferida a prova pericial indispensável para resolução da lide, servindo-se a sentença apenas das informações prestadas pela empresa – o formulário PPP preenchido sem inconsistências é garantia de fidedignidade e consenso sobre a realidade laborar (se me entendem a ironia). É possível se afirmar que a prova é inútil, antecipando-se, assim, a valoração do seu resultando?
É bastante comum, mormente no âmbito dos juizados especiais, a prova pericial ser indeferida sob o fundamento de que o formulário deveria ser impugnado na esfera trabalhista ou criminal. Por óbvio, sentenciando, o magistrado deixa de reconhecer a natureza especial da atividade. Após o trânsito em julgado da decisão, o segurado/beneficiário obtém um novo PPP e/ou laudo pericial, resultante de uma reclamatória trabalhista contra a empresa, comprovando a sua exposição a agentes nocivos. Uma nova ação é ajuizada com fundamento no PPP corrigido legalmente, mas o processo é extinto, sem resolução do mérito, em razão da coisa julgada material.  
A coisa julgada e seus efeitos são (quase) sempre analisados no reino da pura abstração, um raciocínio abstrato que protege uma segurança jurídica meramente formal. Acontece que a análise deve partir de casos judiciais concretos (uma concreta controvérsia judicial), bem assim do Direito. Existem instrumentos – alguns limitados – capazes de relativizar a força da coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a ação rescisória, a ação anulatória, a impugnação nos cumprimentos de sentença, a impugnação por erro material ou erro de cálculo, a impugnação de sentença inconstitucional, a coisa julgada secundum eventum probationis nas demandas coletivas e, até mesmo, a reclamação. As decisões sobre o tema atentam para a legislação e a jurisprudência, estabelecendo, assim, a validade do Direito.
Nem toda tese é um pretexto para uma correção moral da decisão ou do direito produzido democraticamente, já os argumentos supramenciados (nos dois primeiros parágrafos) são um pretexto para se ignorar a jurisprudência e doutrina ou dar uma resposta antes da pergunta.

Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1: A Turma Nacional de Uniformização assim tratou do caso: “Com efeito, a improcedência do pedido amparou-se no PPP, cujos registros revelaram que o ora recorrido não esteve exposto em seu no ambiente de trabalho a pressão sonora superior aos limites de tolerância previstos nas normas de regência. É dizer: não se cuida de insuficiência de provas que embaracem a resolução do mérito, mas de comprovação da inexistência do direito do autor.” Ocorre que, no primeiro processo (2008.70.64.000708-0/PR), o magistrado adotou como motivo (da improcedência), também, a ausência de laudo técnico: “Ademais, como a parte autora não comprovou a efetiva exposição ao agente nocivo - pois não acostou laudo técnico ao processo administrativo e a estes autos -, improcede seu pedido de reconhecimento da especialidade do período de 09.09.1996 a 04.10.2006.” Isso porque: “Em relação ao agente nocivo ruído, o reconhecimento da insalubridade deve vir pautada em laudo técnico sempre, mesmo em período anterior à Lei n.º 9.528/97, uma vez que indispensável para aferição da intensidade e condições do ambiente de trabalho.” No segundo processo, o autor juntou cópia de laudo pericial realizado por ocasião de reclamatória trabalhista (autos nº 00345-2008-026-09-00-2), o qual recompõe uma situação fática sempre existente, evidenciando e, ao mesmo tempo, suprindo a ausência de dados técnicos que motivaram a improcedência da demanda anterior. Sobre a tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça, a falta de prova na demanda anterior possibilita a propositura de uma nova ação qualificada por novos e decisivos documentos, mesmo naqueles casos em que o processo anterior não foi extinto sem resolução de mérito. O que confirma tal orientação é que, nos julgamentos dos recursos AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 459.462 – RS e Agravo em Recurso Especial nº 688.800 - RS, mesmo sem a extinção do processo anterior, o Ministro Sérgio Kukina concluiu pela aplicação da orientação firmada no julgamento do REsp 1.352.721/SP, determinando-se o retorno dos autos ao tribunal de origem, com afastamento da coisa julgada. O próprio Min. Napoleão, relator do voto vencedor no REsp 1.352.721/SP, adotou o mesmo entendimento quando do julgamento do AgRg no Agravo em Recurso Especial Nº 617.362 – RS. Em seu apelo, o recorrente sustentou que a deficiência probatória, no processo anterior, impedia a decisão de mérito e a formação da coisa julgada. As notas taquigráficas do julgamento confirmam, igualmente, que a preocupação do Ministro residia na alegada impossibilidade – que decorreria de um julgamento de mérito – de a segurada propor uma nova ação, mediante novos documentos. Defendia ele a necessidade de manter abertas as portas do Judiciário, como forma de assegurar o direito social à Previdência. No mesmo sentido, o Ministro Og Fernandes acrescentou: “Não sei que outro caminho teria a parte interessada se fechássemos, como disse o Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, as portas do Judiciário a um outro pleito, a uma outra pretensão pela compreensão de que essa decisão implicaria julgar com mérito”. Houve, portanto, sinalização positiva para a tese da coisa julgada secundum eventum probationis, inclusive para benefícios de aposentadoria especial, como fica claro no julgamento Recurso Especial 1.580.083 – PE: “PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA. DENEGAÇÃO DO DIREITO COM BASE NA AUSÊNCIA OU GRAVE PRECARIEDADE DA PROVA. FLEXIBILIZAÇÃO DOS INSTITUTOS PROCESSUAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA. POSSIBILIDADE EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. MATÉRIA JÁ ENFRENTADA PELO RITO DO ART. 543-C DO CPC. 1. A Corte Especial do STJ, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.352.721/SP, da relatoria do Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 28/04/2016, fixou a tese de que, não estando o feito devidamente instruído com as provas necessárias ao deslinde da controvérsia, a ação deve ser extinta sem resolução de mérito, a fim de propiciar ao segurado a renovação do ajuizamento da demanda. 2. Nessa linha de raciocínio, revela-se possível, no caso concreto, a excepcional flexibilização da coisa julgada formada em ação anterior, na qual o direito ao benefício previdenciário tenha sido negado em virtude da grave precariedade das provas apresentadas, consoante constatado pelo acórdão local. 3. Recurso especial do INSS a que se nega provimento.”A situação parece configurar o chamado disapproval, que ocorre quando uma Corte superior emite fortes sinais de que o precedente está ou precisa ser superado (outdated). Embora esta técnica não implique na revogação do precedente, o que dependerá de decisão específica, ela o enfraquece, assim como debilita o respectivo potencial de aplicabilidade aos casos futuros. (FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 312).

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