ADI 7773 E A REVISÃO DO TEMA 555/STF: O QUE DEVEMOS CONSIDERAR AQUI?

 

§ 1º. Os autores da ADI 7773 discutem a (in)constitucionalidade do art. 57, § 6º, da Lei 8.213/1991, in verbis:

O benefício previsto neste artigo será financiado com os recursos provenientes da contribuição de que trata o inciso II do art. 22 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, cujas alíquotas serão acrescidas de doze, nove ou seis pontos percentuais, conforme a atividade exercida pelo segurado a serviço da empresa permita a concessão de aposentadoria especial após quinze, vinte ou vinte e cinco anos de contribuição, respectivamente.

O financiamento do benefício tem como base o risco, não a efetiva exposição do segurado a agentes nocivos, como prevê o art. 22, II, da Lei 8.212/1991:

II - para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos: (Redação dada pela Lei nº 9.732, de 1998).

a) 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve;

b) 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio;

c) 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave.

O agrupamento das atividades por grau de risco tem com base estatísticas de acidente do trabalho, apuradas em inspeção (art. 22, § 3º).

São, portanto, inconstitucionais os atos, decretos e instruções normativas da Receita Federal, que cobram a contribuição em razão especificamente da concessão do benefício de aposentadoria especial.

O financiamento da aposentadoria especial não vai necessariamente coincidir com a concessão do benefício previdenciário. Oportuna a transcrição do seguinte trecho do Tema 555/STF (ARE 664.335):

Destarte, não há ofensa ao princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, pois existe a previsão na própria sistemática da aposentadoria especial da figura do incentivo (art. 22, II e § 3º, Lei n.º 8.212/91), que, por si só, não consubstancia a concessão do benefício sem a correspondente fonte de custeio (art. 195, § 5º, CRFB/88).

Fosse automática a concessão da aposentadoria especial, bastaria a indicação “IEAN” no CNIS do segurado.

Com efeito, não se pode confundir o financiamento do benefício, o que tem relação direta com os riscos presentes no meio ambiente de trabalho, e a concessão do benefício de aposentadoria especial.

§ 2º. O financiamento tem com fundamento o princípio da solidariedade. Ao princípio da solidariedade (CF/1988, art. 194) se conferiu uma consciência coletiva acerca dos riscos no meio ambiente de trabalho e da necessidade de proteção social do ser humano trabalhador.[1] Essa “dimensão comunitária” revela uma preocupação que vincula a todos na realização do bem em jogo (saúde, vida e dignidade).

O paradigma da solidariedade não é só um paradigma da indenização ou compensação, mas também um paradigma da prevenção/precaução. Nesse caso, o risco é maneira de “medir o valor dos valores” nos domínios da moral, da economia, da proteção social ou do meio ambiente (do trabalho).[2]

A tese de Luiz Gustavo Boiam Pancotti coloca a Previdência Social num contexto muito maior, no sentido de que o que atinge o indivíduo reflete na sociedade e vice-versa.[3] Acrescente-se a isso o papel da aposentadoria especial na gestão do risco, enquanto técnica de prevenção de danos aos trabalhadores.

Com fundamento “na solidariedade, antes de tudo, a Constituição oferece condições de eficácia ao sistema de proteção social quanto às hipóteses de cobertura, ao nível de proteção e ao universo de seus beneficiários”.[4] A solidariedade, por implicar responsabilidade coletiva, pode ser a chave do financiamento do sistema, para assegurar, também, a proteção dos segurados contribuintes individuais. Para José Fernando de Castro Farias:

Coloca-se em evidência que a solidariedade social não é unicamente devida à existência de um Estado intervencionista. No discurso solidarista, a solidariedade social não se realiza exclusivamente pela via do Estado. Este não é a única forma de vida coletiva. O discurso solidarista supõe a existência de uma pluralidade de solidariedades realizadas em todos o espaço da sociedade civil, onde os grupos sociais são sujeitos de direitos no sentido de que são produtores de direitos autônomos em relação ao Estado. Nessa perspectiva, o direito de solidariedade é uma prática alimentada pela sua própria complexidade social, que exige uma sociedade aberta flexível e pluralista. Uma sociedade baseada cada vez mais na autonomização da sociedade civil, dos grupos sociais e também dos indivíduos, pois estes não são jamais vistos de maneira isolada, mas no quadro da trama de solidariedades existentes na sociedade.[5]

A solidariedade, como defende Ingo Wolfgang Sarlet, deve ser vista como um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Para o autor, o conceito de dignidade da pessoa humana é calcado no substrato axiológico e conteúdo normativo, sendo que propõe um desdobramento da dignidade em quatro princípios, quais sejam o da igualdade, o da integridade física e moral, o da liberdade e o da solidariedade.[6]

No próprio Tema 555, o STF já perquiriu a finalidade do benefício de aposentadoria especial: “[...] deve-se indagar: qual a finalidade da previsão constitucional do benefício previdenciário da aposentadoria especial? Por óbvio, é a de amparar, tendo em vista o sistema constitucional de direitos fundamentais que devem sempre ser perquiridos — vida, saúde, dignidade da pessoa humana —, o trabalhador que laborou em condições nocivas e perigosas à sua saúde, de forma que a possibilidade do evento danoso pelo contato com os agentes nocivos leva à necessidade de um descanso precoce do ser humano, o que é amparado pela Previdência Social".

O novo paradigma de prevenção deve ser assumido como finalidade do Estado, e não consequência – resultado de um modelo de pensamento que se contenta com a possibilidade de compensação do dano, como se aceitável.

Afinal, o risco não pode ser somente considerado para fins arrecadatórios (!). É como já disse José Antônio Savaris[7]: “Mas uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”.

§ 3º. O que pretendem os autores da ADI já foi resolvido pelo STF. A tese que foi adotada como repercussão geral no Tema 555/STF é, à luz do § 5º do art. 195, bem como do §1º e do caput do art. 201 da Constituição, “o direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial”.

A segunda tese não pode ser enfrentada nem mesmo residualmente, uma vez que não existe caso concreto.

A ADI não é o caminho para se pretender a revisão de um precedente. Diferentemente das súmulas, que são enunciados “gerais e abstratos” editados visando à “solução de casos futuros”, o precedente exsurge para resolver um caso concreto, como no caso do Tema 555/STF. Com efeito, a ADI não se presta para tal finalidade. Uma reclamação, pelo contrário, poderia ser manejada contra determinada forma de interpretação de um precedente de observação obrigatória. Neste aspecto, o provimento poderia ser revisado, no sentido de julgar inválida determinada forma de interpretação.

§ 4º. Quando falamos de EPI é importante deixar claro que ele não elimina ou neutraliza o ruído na origem. O EPI se interpõe entre o trabalhador e o agente nocivo, como última e única barreira de proteção. Por óbvio, o EPI pode falhar e não ser eficaz (jamais ele será 100% eficaz), permanecendo o trabalhador exposto ao ruído presente no meio ambiente de trabalho. Apostar no EPI como solução é colocar em segundo plano a proteção coletiva e/ou a eliminação do agente nocivo.

Assim como os “adicionais de suicídio”, numa relação de custo-benefício, muitas empresas vão preferir simplesmente apostar no EPI (é sempre mais prático e barato comprar a saúde do trabalhador), e não em melhores tecnologias. O risco deve ser compreendido na relação com o meio ambiente de trabalho e, consequentemente, na hierarquia que existe ...eliminar, reduzir e controlar. O EPI aparece como última opção.

O referencial constitucional (“efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes” - CF, art. 201, § 1º, II) reclama uma situação concreta, uma questão de fato, a qual depende de provas. Em sendo o caso de uma revisão do Tema 555, o STF deverá buscar equilibrar forças desiguais, já que não estão em condições de igualdade, segurado, empresa e INSS.

O Tema 555/STF trabalha com presunções que operam no plano da distribuição do ônus da prova e da posterior argumentação decisional. A orientação seguida pelo TRF4, no julgamento do IRDR 15, se ajusta perfeitamente à teoria que é vista no § 1º do art. 373 do NCPC, devendo toda e qualquer dúvida ser solvida mediante prova pericial e/ou ser computada em favor do segurado, com fundamento nos princípios da prevenção/precaução, do in dubio pro segurado e da proteção do trabalhador, conforme item 11 do já citado precedente..  

 

Bah1: Nesse sentido, a ideia de consciência coletiva vai ao encontro do estudo de Wilson Engelmann e Maurício Góes: “O que se pretende, de fato, é se alcançar essa repaginação da consciência para uma consciência coletiva, servindo-se do princípio de solidariedade como portal ou instrumento para um novo pensar e interpretar acerca da matéria em questão”. ENGELMANN, Wilson; GÓES, Maurício de Carvalho. Direitos das nanotecnologias e o meio ambiento do trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 101.

Bah2: EWALD, François; KESSLER, Denis. Les noces du risque et de la politique. Le Débat, Paris, n. 109, p. 67-72, mars/avril 2000. Disponível em: <http://www.cairn.info/revue-le-debat-2000-2-page-55.htm>. Acesso em: 10 nov. 2015.

Bah3: PANCOTTI, Luiz Gustavo Boiam. Direito previdenciário difuso: ação coletiva previdenciária. Curitiba: Juruá, 2022. p. 125.

Bah4: ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio. Curso de direito previdenciário: fundamentos de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Curitiba: Alteridade, 2014. p. 125.

Bah5: FARIAS, José Fernando de Castro. As origens do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 55.

Bah6: SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 123.

Bah7: SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 81.


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