PL 245/2019: DE NOVO O BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE PREVIDENCIÁRIO?

  

Segundo o art. 6º, § 3º, do PL 245, 2019, “consideram-se especiais os períodos de descanso determinados pela legislação trabalhista, inclusive férias, os de afastamento decorrentes de gozo de benefícios por incapacidade temporária ou permanente acidentários, bem como os de percepção de salário-maternidade, desde que, à data do afastamento, o segurado estivesse exposto.” (grifo nosso).

De novo?

A respeito da possibilidade de o tempo em gozo de auxílio-doença previdenciário ser computado para efeitos de atividade especial, a resposta me parece, relativamente, fácil. Para tanto, não vou precisar dar inúmeros exemplos de como, na prática, situações desproporcionais podem acontecer, uma vez que - já se sabe - a lei não consegue capturar toda a realidade. Dizer que ambos benefícios decorrem de um evento indesejado é retórico. Se fosse desejado estaríamos falando de fraude ou má-fé. No que diz respeito à fonte de custeio é suficiente reter que as empresas são obrigadas, por lei, a contribuírem para o financiamento do benefício da aposentadoria especial, a partir dos acréscimos de 6%, 9% ou 12%, os quais incidentes, veja bem – bem mesmo –, sobre a remuneração dos trabalhadores.

Apesar da reconstrução histórica mostrar que, até o Dec. 4.882/03, nunca houve distinção, bem como que a própria lei e jurisprudência vêm equiparando o auxílio-doença previdenciário com o auxílio-doença acidentário, para efeitos de carência – por exemplo –, o mais importante exsurge da relação do benefício de incapacidade com a aposentadoria especial, mais especificamente com os fatores de risco. Nesse nível, a comparação desse benefício de incapacidade com os períodos de descanso previstos na legislação trabalhista ou salário maternidade pode ser dispensada. O que nos interessa está, exatamente, na relação entre o auxílio-doença previdenciário, o auxílio-doença acidentário e os agentes nocivos que justificam a concessão da aposentadoria especial. O que justifica – por princípio – um tratamento diferenciado entre auxílio-doença previdenciário e auxílio-doença acidentário? A lei exige correspondência entre o auxílio-doença acidentário e os agentes nocivos presentes no ambiente de trabalho?

Quando a incapacidade tem como causa a exposição a um agente, presente no meio ambiente do trabalho, resta estabelecido o nexo causal entre a doença e o trabalho. No entanto, um acidente na empresa pode não ter relação com os agentes nocivos que justificam o reconhecimento da atividade como especial. Se a lei não exige tal relação, qual a diferença no tempo em gozo de benefício? Em ambos os casos os segurados fica(ra)m afastados – dos agentes nocivos. Assim, das duas, uma: ou nenhum afastamento decorrente de gozo de benéfico por incapacidade deve ser considerado como tempo de trabalho especial, ou, logicamente, os dois, auxílio-doença previdenciário e auxílio-doença acidentário, devem ser. Aqui não tem essa de cada um deles ser o que o outro não é. As eventuais diferenças são resolvidas na esfera trabalhista, e não na previdenciária. Aliás, o Regulamento de Previdência Social foi longe demais, menos para regulamentar e mais para restringir, isto é, criar uma diferença que viola o princípio da isonomia.

Doutrina e jurisprudência mostram-se circunspectas acerca desses pontos. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou a tese de que o segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença – seja acidentário ou previdenciário –, faz jus ao cômputo desse período como especial. Ao julgar recurso repetitivo acerca do assunto (Tema 998), o colegiado considerou ilegal a distinção entre as modalidades de afastamento, feita pelo Decreto 3.048/1999, o qual prevê apenas o cômputo do período de gozo de auxílio-doença acidentário como especial.

Apesar da decisão transitada em julgado, isso parece não significar nada. O Dec. 10.410/2020, no seu art. 65, parágrafo único, não apenas deixou de prever a possibilidade de reconhecer, como tempo de serviço especial, os períodos previdenciários em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, mas também os previdenciários acidentários. Os acontecimentos recentes atualizaram as imagens e conferiram ainda mais incoerência a tal medida. Aquele profissional da saúde que precisou se afastar, em razão de ter se contaminado com a COVID-19 no trabalho, não poderá computar esse tempo como de “efetiva exposição a agentes”, para fins de aposentadoria. Cumpre observar que o STF reconheceu o coronavírus como acidente do trabalho.

Agora, de novo, o PL 245, 2019, busca impedir, uma vez mais, a possibilidade de considerarmos como especiais os períodos em gozo de benefícios por incapacidade temporária ou permanente, vale sublinhar: não acidentários.

Em desfavor do Decreto 10.410/2020, além da falta de debates, é cediço que um decreto não pode extrapolar os limites da Constituição, no sentido de criar direitos e obrigações. Não pretendo avançar muito além nesse caminho, mas o fiz no meu livro.[1]. Com relação ao Dec. 10.410/2020, tranquilo, quer dizer, na perspectiva de uma jurisprudência de observância obrigatória, os fundamentos determinantes do Repetitivo Tema 998/STJ constituem condição necessária e suficiente para se superar a sua redação. Sobre o tema, o FONAJEF editou o Enunciado nº 217 "O segurado que exerce atividades em condições especiais, quando em gozo de auxílio-doença, seja acidentário ou previdenciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como tempo de serviço especial, mesmo após a EC 103/2019".

O problema agora é o PL 245, 2019 - o que suscita discussões!

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Bah1: SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial e a nova previdência: os caminhos do direito (processual) previdenciário. 2.ed. – Curitiba: Alteridade, 2022.


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