A PEC 06/2019: A IDEIA DE "LADEIRA ESCORREGADIA" E OUTROS ARGUMENTOS RETÓRICOS
Não poderia ser
mais simples: se não for aprovada a reforma da previdência social (A), o Brasil
quebra (Z). Uma característica comum a esse tipo de argumento é declarar que
existe uma ladeira escorregadia de A a Z (o também conhecido "8 ou
80"), mas manter silêncio sobre os estágios B a Y, ou seja, os inúmeros
desfechos (soluções) possíveis. A estratégia é focar no pior cenário possível e
não discutir os méritos (ou a falta deles).[1]
Por exemplo: se um dos problemas está no fato
de 15% dos mais ricos cumularem 47% da renda previdenciária, por que não
estabelecer um teto menor para essas aposentadorias ou uma contribuição para os
inativos, enfim, por que não se discute ou ataca o problema, a fim de evitar
uma escorregada incontrolável ladeira abaixo?
No entanto, qual a solução proposta? Não
deixar os trabalhadores se aposentarem antes dos 62 anos, se mulher, ou 65 anos, se
homem; aumentar o tempo de carência mínimo para o trabalhador ter acesso ao
benefício, de 15 para 20 anos; criar regras de transição inatingíveis para quem
estiver a mais de dois anos para se aposentar pelas regras vigentes; diminuir o
valor dos benefícios; acabar com a aposentadoria especial; e, por fim, criar um regime capitalizado, em que cada um
será responsável por poupar – depositar numa poupança individual (sem
contribuição patronal) – o suficiente para garantir uma subsistência digna e
inclusiva até o final da vida. É por isso que digo: Uma coisa é a preocupação
com os custos previdenciários (futuros); outra, muito distinta, é alegar que a
“nova previdência” vai beneficiar os mais pobres ou é boa para os
trabalhadores. No primeiro, o debate é algo inerente a qualquer regime de
economia coletiva, diante da necessidade de o sistema ser sustentável e tudo
mais, logo, podemos discordar, ou não, das propostas. No segundo, uma reflexão
ética se faz necessária, já que estão mentindo adredemente para a sociedade.
O governo trabalha, igualmente, com os
argumentos dedutivos (silogismos), em que a conclusão não vai além das
premissas, logo, fica fácil perceber a contradição. Ben Dupré explica que “a
conclusão segue as (é acarretada pelas) premissas e o argumento é considerado
‘válido’. Se as premissas de um argumento válido são verdadeiras, a conclusão
terá a garantia de ser verdadeira, e o argumento é considerado
‘sólido’".[2] Note-se que o governo mistura os regimes, colocando tudo no
mesmo saco, como se compartilhassem do mesmo orçamento. Tudo isso para
sustentar o déficit no Regime Geral de Previdência Social.
Não bastasse a premissa equivocada, já que o
orçamento da Seguridade Social não abrange os regimes próprios de previdência
social, bem como aquelas modalidades de inatividade destinadas aos militares, o
governo agora fala em deixar os municípios e Estados de fora da reforma. Se
existe um argumento válido é, justamente, o de que o sistema de muitos
municípios e Estados eclipsaram. Com efeito, se o que antes justificava uma
reforma no regime de previdência dos servidores públicos não serve mais, isso
nos faz questionar a necessidade uma reforma para os trabalhadores na
iniciativa privada.
Tudo é desculpa para uma reforma completa.
Assim, os fins justificam os meios. Lembrando que, no caso da PEC 06/2019, o
fim em si não é – nem de longe – salvar a previdência social, porquanto as
mudanças previstas na proposta legislativa ultrapassam os limites que desafiam
o sistema de seguridade social de continuar a fornecer não apenas possibilidades de
prevenção contra danos na economia do trabalhador, mas também de prevenção
contra danos à saúde e/ou integridade física/mental do trabalhador humano. O fim
é agradar e apaziguar o Deus Mercado, a fim de recuperar a confiança das
empresas e gerar empregos, além de fazer sobrar mais dinheiro para áreas como
educação, saúde e segurança pública. Nessa perspectiva
consequencialista/utilitarista, não há nenhuma avaliação de eficiência em se
alcançar tal fim.
O que lhe faz acreditar que é acabando com
direitos sociais (trabalhistas e previdenciários), – que influenciam na
construção de um espaço de bem-estar digno no mundo –, que se investirá, mais,
em questões sociais, como saúde, educação, segurança pública? Dentro do
orçamento da seguridade social temos o sistema da saúde, e dela retiram
recursos para outros fins que não saúde. Os “custos” que se pretende poupar com
a reforma da previdência não poderão ser transferidos para a educação, em razão
do congelamento de gastos – EC 95/2016.
Assim como o desemprego não diminuiu com a
reforma trabalhista, a reforma da previdência não é a solução, pelo contrário,
a "nova previdência social" não apenas deixará de cobrir os velhos
riscos, mas irá potencializá-los, com o incremento das desigualdades sociais e,
consequentemente, da violência, da injustiça, da exploração, da fome, da
precarização do trabalho, das doenças, da ignorância, etcétera. O grande
desafio da reforma da previdência será, sem sombra de dúvidas, o desemprego, já
que o mercado de trabalho (excludente) não está preparado para absorver
trabalhadores com idade igual ou superior a 60 anos, mormente no processo
produtivo.
Aqui os perigos representados pelas reformas
podem ser ilustrados pela historia do sapo na panela. Se o objetivo é cozinhar
um sapo, você não terá sucesso se o colocar numa panela de água fervendo, pois
ele logo saltaria para fora. Estamos assistindo a uma perda cumulativa e
gradual de direito sociais - conquistas histórias. Já se fala em criar o
trabalhador “sem”: sem 13º, sem férias e sem FTGS. Tudo é possível, negociação
entre querer e poder. É claro que devemos aceitar algumas mudanças e distinções
arbitrárias sobre determinadas questões, a partir de elementos objetivos, mas
isso (o que vem sendo feito) é tratar os trabalhadores como um tipo de
mercadoria a ser distribuída. Ajustes são necessários, a questão é: como e a
que preço?
John Rawls, em sua obra “Uma teoria da
justiça”, defende o “princípio da diferença”, segundo o qual as desigualdade
sociais só se justificam se tiverem um resultado: "que os membros em pior
situação fiquem em melhor condição do que estariam antes".[3] A PEC
06/2019, se aprovada, deixará os desfavorecidos em uma situação ainda pior! Uma reforma da previdência social é necessária, mas não a qualquer custo. Podemos concordar com alguns motivos, mas nenhum é suficiente para justificar o fim da previdência social. A "nova previdência" é um disfarce para motivos ocultos como interesses de instituições financeiras ...é uma agressão contra o trabalhador brasileiro.
A primeira pergunta jamais poderia ser
"você é contra ou a favor da reforma?", mas "você sabe o que
muda com ela?"
Escrito por Diego Henrique Schuster
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Bah1-3: Trabalhei com as formas de argumentação apresentadas no livro: DUPRÉ, Ben. 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer. Tradução: Rosemarie Ziegelmaier. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2015.
Bah1-3: Trabalhei com as formas de argumentação apresentadas no livro: DUPRÉ, Ben. 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer. Tradução: Rosemarie Ziegelmaier. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2015.
Excelente!!
ResponderExcluirPois é, meu caro. Só li verdades. Aliás, durante a leitura, o mosquitinho do "como fazer com que o povo entenda isso" ficou zunindo no meu ouvido. Todos nós, sempre que podemos, batalhamos para mostrar a perversidade da reforma e a falácia dos argumentos que a fundamentam. O que me chama a atenção, entretanto, é o fato de que a aparência da insuficiência dessa batalha está aflorada nos últimos tempos. Me parece que nossos argumentos já não são mais ouvidos... É de uma tristeza sem fim ver que, no fim das contas, nós não estamos conseguindo mostrar os caminhos das pedras para aqueles que precisam enxergar por onde andar. Mas eu espero estar errada; e por isso continuo na batalha. Digressões à parte, não percamos o foco. Sigamos em frente.
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