DA AÇÃO RESCISÓRIA (NO RITO ORDINÁRIO) AO MICROSSISTEMA DO JEF: "A DIFERENÇA É O QUE TEMOS EM COMUM" (HG)

 

A Súmula 514 do STF foi aprovada em sessão realizada em 03.12.1969, arrazoada nos antigos arts. 284, I, e 798 do Código de Processo Civil de 1939 e na Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), de 1942. O texto sumular dispõe que “admite-se ação rescisória contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se tenham esgotado todos os recursos”. (Súmula 514 do STF, aprovada em 03.12.1969, DJ 10.12.1969. p. 5932).

De fato, não se exige o esgotamento dos recursos para o cabimento da ação rescisória. Assim sendo, o esgotamento dos recursos não se insere entre os requisitos de admissibilidade da ação rescisória. O STJ tem entendimento consolidado no sentido de ser dispensável, para a propositura da ação rescisória, o esgotamento prévio de todos os recursos disponíveis.

Dessa forma, a parte não precisa se valer de todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico para pretender a rescisão da sentença, de modo que, mesmo havendo trânsito em julgado na primeira instância por ausência de interposição de apelação, ainda assim será cabível o ajuizamento da ação rescisória. Nesse sentido: TRF4, AR 0000384-23.2014.404.0000, Terceira Seção, Relator Rogerio Favreto, D.E. 21/01/2015.

Agora, é importante se fazer algumas considerações críticas, já que o entendimento sumulado não faculta a utilização da ação rescisória como sucedâneo recursal (Recurso Especial n. 1622470/RS, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 05.092017).

É, pois, isso que vem fazendo o INSS, na questão da conversão invertida (Resp. 1.310.034 - Tema 546). Mesmo na vigência de um precedente de observação obrigatória, o que lhe possibilitaria um recurso especial, ele tem lançado mão da ação rescisória, com fundamento na hipótese de manifesta violação à norma jurídica (CPC, art. 966, VI, §§ 5º e 6º). Assim, mesmo após abandonar, por duas ou três vezes, o recurso cabível contra a decisão “rebelde”, a ação rescisória é admitida muitos anos depois da decisão rescindenda. 

Aqui importante abrir um parêntese para referir que as Súmulas 401 do STJ e 514 do STF convivem harmonicamente. O primeiro verbete afirma que o prazo decadencial somente se inicia a partir do último pronunciamento judicial, ou seja, ainda que haja questões preclusas, o prazo para o ajuizamento da ação rescisória para estas tem início juntamente com todas as questões que se pretende discutir. Por outras palavras, não se aplica teoria dos capítulos. O segundo verbete diz apenas que a parte não precisa se valer de todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico para pretender a rescisão da sentença, de modo que, mesmo havendo trânsito em julgado na primeira instância por ausência de interposição de apelação, ainda assim será cabível o ajuizamento da ação rescisória.

É claro que isso vale também para o autor/segurado, então, não se trata de uma crítica à postura do INSS.

Sobre a Súmula 514/STF, a doutrina reconhece: “Muito embora esteja em vigor, não mantém a coerência com o sistema atual, uma vez que a expressão ‘recursos’ pode levar o intérprete a entender a ação rescisória como um sucedâneo recursal, ou seja, não se deve abandonar o recurso para ingressar com ação rescisória.”[1] No entanto, o que mais perto interessa à problemática é deixar claro que, no rito ordinário, é cabível ação rescisória contra decisões que não observam os precedentes dos tribunais superiores. 

Conduzindo assim o pensamento, o lugar se torna perfeito para uma crítica ao microssistema do JEF. Isso porque nele é vedada a ação rescisória. A matéria já foi pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça na Súmula 203-STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”.

Ah, mas e a reclamação? No julgamento da RECLAMAÇÃO Nº 44928 - RS (2023/0055463-0), o Superior Tribunal de Justiça assim arrematou:

No mesmo sentido, a Corte Especial do STJ decidiu que não cabe reclamação para o exame da correta aplicação de precedente obrigatório formado em julgamento de recurso especial repetitivo à realidade do processo (Rcl 36.476/SP). Naquela assentada, a Corte considerou que o art. 988, IV, do CPC/2015 foi alterado pela Lei n. 13.256/2016, tendo sido excluída a previsão de cabimento de reclamação para garantir a observância de precedente oriundo de 'casos repetitivos', passando a constar apenas o precedente advindo do julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas, que é subespécie daqueles.

Isso significa, sem emprestar favor a ninguém, que no microssistema do JEF não há como fazer valer os precedentes de observação do Superior Tribunal de Justiça, quer seja por meio de incidentes de uniformização, quer seja por meio de ação rescisória e, agora, de reclamação, quando o conteúdo for processual (Conforme Súmula 43 da TNU: “Não cabe incidente de uniformização que verse sobre matéria processual”). Como garantir a autoridade do Tema 629/STJ contra decisão de Turma Recursal (por exemplo)?

Assim sendo, o Superior Tribunal de Justiça está tirando dos desafortunados do JEF o único/último mecanismo processual adequado para denunciar às Cortes Superiores atos ou decisões ofensivos à sua competência ou à autoridade de suas decisões. Aliás, não só contra decisões proferidas no âmbito do JEF, mas em geral. O que restou da reclamação é o seu cabimento com fundamento na hipótese de não observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (CPC, art. 988, IV), ou seja, nesses casos a reclamação deverá ser endereçada para os respectivos tribunais ordinários (TRF, TJ, etc.). Além disso, também é cabível reclamação enderençada para a TNU sempre que, em sede de juízo de retração, a Turma Recursal se recursar a adequar sua decisão. Quero acreditar que o problema esteja na má interpretação/aplicação da decisão de relatoria da Min. Nancy (Rcl 36.476/SP). Há que se fazer a necessária distinção com relação àquelas decisões em que a Turma Recursal se nega a aplicar e/ou aplica equivocadamente um repetitivo do STJ, por exemplo. É bem verdade que a única decisão da qual tínhamos notícia, capaz de confortar e demonstrar a viabilidade de reclamação contra decisão proferida no âmbito do JEF, foi reformada (RECLAMAÇÃO 37.516 - PE, de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho)

Moral da história: enquanto no rito ordinário a ação rescisória se apresenta como mais um caminho para se combater decisões "rebeldes"[2], sendo possível até mesmo atacar aquelas decisões que aplicam um precedente sem observar a questão discutida no processo, ou seja, sem fazer a devida distinção; no microssistema do JEF, as decisões são inquebráveis, sendo possível ao juiz escolher respeitar, ou não, os precedentes de observância obrigatória. Então, é sentar e chorar! Eu, particularmente, prefiro reclamar, afinal, "ser chato não é inconstitucional", como já vi dizer o Professor Lenio Streck, mormente no âmbito do JEF! Devemos colocar sob luz forte esse enorme contraste!

Por aqui se usa muito: “Se fosse uma cobra, tinha te mordido”. A diferença em relação a outros estados é que, aqui, a frase vem precedida de um “bah”. Seja como for, trata-se de um dito popular muito usado para descrever uma situação na qual algo está na nossa frente e não vemos. Se a Constituição fosse uma cobra, já teria picado muita gente! Não fosse assim já se teria declarado a inconstitucionalidade do art. 59 da Lei 9099/95, com a admissão de ação rescisória num sistema onde, justamente, vigora a menor intervenção jurisdicional, entre outras coisas.

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Bah1: SOARES, Marcelo Negri; RORATO, Izabella Freschi. Ação rescisória. 2ª ed. São Paulo: Blucher, 2019. p. 65.

Bah2: A 4ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.163.267/RS, entendeu que a desobediência judiciária não pode ser referendada em detrimento da segurança jurídica, da isonomia e da efetividade, firmando, assim, o entendimento de que a sentença rebelde pode ser desconstituída por meio de ação rescisória. Depois disso, no § 5º do art. 966, por força da aprovação da Lei n. 13.256/2016, foi prevista a possibilidade de uso de rescisória para a desconstituição de decisões contrárias a precedentes originados do julgamento de casos repetitivos, o que significa que cabe rescisória fundada na interpretação de acórdãos do STJ e/ou incidente de resolução de demandas repetitivas. Note-se que, nesse caso, a Súmula 343/STF não obsta o ajuizamento de ação rescisória. 

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