O INTERESSE RECURSAL E O TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL COM FUNDAMENTO EM MAIS DE UM AGENTE NOCIVO

 

O advogado previdenciarista não tem sossego. O mal-entendido agora é não dar provimento à apelação ou recurso inominado sob o argumento de que: “[...] não há falar em interesse recursal, na medida em que não foi sucumbente a parte autora no ponto. O reconhecimento do tempo especial por mais de um fundamento não altera a conclusão da sentença.”[1] Por outras palavras, a sentença reconhece a especialidade com fundamento no agente físico ruído, inexistindo, portanto, interesse recursal para ver reconhecida a especialidade, do mesmo período, com fundamento nos agentes químicos e vice-versa.

O que acontece (ou pode acontecer) depois? A especialidade do período, reconhecida com fundamento em apenas um agente nocivo, é afastada. A probabilidade de isso acontecer só aumenta no âmbito do JEF.[2] Para o agente físico ruído, por exemplo, existem vários precedentes que, assim como um sniper, esperam o sinal do INSS para negar o direito do segurado, sem qualquer chance de defesa, vale dizer: sem contraditório enquanto garantia de não surpresa (Vide Temas 174/TNU).

Nem num alto nível de abstração se poderia concordar com isso. Isso porque ao segurado se atribui não apenas o ônus da prova (CPC, art. 373, I), mas também o ônus de concentrar todos os fatos constitutivos (todas as causas de pedir) em uma só demanda. A eficácia preclusiva da coisa julgada (CPC, art. 508), aplicada de forma estouvada pela jurisprudência previdenciária, trata o instituto como uma espécie de sanção ao descumprimento do ônus de alegar todas as causas de pedir, pois os fundamentos não invocados são incapazes de evitar a caracterização de res judicata.

Isso se transformou num pesadelo para os advogados, já que, muitas vezes, o autor não consegue estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no PPP, sendo-lhe negada a prova pericial – único meio de demonstrar/comprovar a especialidade em razão da exposição a agentes nocivos não contemplados no documento.

Está difícil fazer o julgador entender que cada agente nocivo – tutelado pelo ordenamento jurídico – é capaz de produzir efeitos jurídicos autônomos, constituindo, por isso, uma causa de pedir, como decide o Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz:

Apesar de o embargante revelar, na verdade, inconformidade com o resultado do julgamento, há um ponto que merece acréscimo de fundamentação, e é apenas nesse sentido que os aclaratórios devem ser acolhidos. Impõe-se, no caso, a conclusão de que não há coisa julgada a justificar o ajuizamento da ação rescisória, pois não houve efetiva decisão exauriente sobre o tempo especial do ponto de vista dos agentes químicos para o período em questão (de 01.01.1998 a 18.11.2003), razão pela qual, sob esse aspecto, a ação rescisória não deve ser conhecida. É possível, assim, a rediscussão da especialidade em nova ação ordinária à luz do agente químico, já que se caracteriza, em tal situação, uma nova causa petendi. 3. Embargos declaratórios acolhidos em parte.[3]

Nessa perspectiva, a rigor, não haveria coisa julgada quanto aos agentes nocivos não analisados. É importante sublinhar: uma coisa são os agentes alegados e defendidos desde a petição inicial; outra, muito distinta, é conseguir estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no formulário PPP. A existência de contraditório prévio e efetivo pode até dispensar um pedido expresso (vide art. 503, §§ 1º e 2º), mas a sua falta impede a formação de coisa julgada, isto é, mesmo existindo um pedido expresso (questão principal).

Com efeito, o objeto da declaração do resultado deve ficar limitado à matéria contraditada. Cumpre (sempre) perguntar: Sobre qual agente nocivo o julgador teve condições de exercer seu juízo de mérito? O que foi objeto de cognição exauriente? Suponhamos que o formulário padrão informa o agente físico ruído abaixo do limite de tolerância. O autor impugna o formulário padrão com fundamento em evidências sérias da exposição a agentes químicos. Na hipótese de ser negado o contraditório efetivo e pleno sobre os agentes químicos, com o indeferimento de prova pericial, a decisão deverá fazer coisa julgada tão somente em relação ao agente físico ruído.

Não pretendo, por ora, avançar muito além nesse caminho. A ideia era denunciar as “contradições ao infinito”, isto é, ao mesmo tempo em que se atribui ao segurado o ônus de deduzir todos os agentes nocivos inerentes à função e/ou ao meio ambiente de trabalho, a ele é negada a possibilidade de discutir, com pleno contraditório, a especialidade dos agentes, na fase instrutória, na via recursal e, para enterrar de vez o seu direito, em nova ação.

Ademais, a questão comporta entendimentos divergentes, pois a possibilidade de reiterar o pedido em nova ação não é acolhida irrestritamente, logo, é imperiosa a análise da especialidade do período, com base em todos os agentes nocivos, afastando-se a falta de interesse recursal. É impensável admitir a necessidade de uma nova ação - com todas as implicações que isso tem - para se rediscutir um período, com fundamento num agente nocivo que não só poderia como deveria ter sido analisado.

Mas voltando ao interesse recursal. Observe-se que a interposição de recurso visa impedir a formação de coisa julgada sobre o agente nocivo não reconhecido na sentença. Eis os busílis! Por isso o interesse recursal reflete diretamente na formação da coisa julgada, vale dizer: considerando o surgimento da autoridade da coisa julgada sobre o conteúdo decisório não impugnado – a parte não impugnada será acobertada pela autoridade da coisa julgada material imediatamente! A questão não é meramente acadêmica, pois há importante relevância pragmática. A redação do art. 1.008 do CPC/2015 corrobora com essa conclusão: “O julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso.”

Para quem ainda não entendeu a gravidade da situação, vale sublinhar: nos casos representados pelo nosso artigo, mesmo com o autor impugnando a decisão, o tribunal ou turma recursal nega haver interesse recursal. Assim, suponhamos que o formulário PPP traga estampado dois agentes nocivos, ruído e hidrocarbonetos aromáticos. Suponhamos que a sentença reconheça a especialidade em razão apenas do agente físico. Na hipótese de a decisão não se manifestar sobre os agentes químicos e fazer coisa julgada, caberá ao autor ajuizar, até mesmo, uma ação rescisória, com fundamento na hipótese de “erro de fato”, como se verifica nessa decisão aqui:

O erro de fato deve ser entendido como um erro de apreciação da prova colacionada aos autos, supondo a existência de um fato inexistente ou a inexistência de um fato realmente existente. No caso concreto, o julgado rescindendo sequer atentou para a existência de outros agentes nocivos, indicados na documentação originalmente trazida aos autos, limitando-se a examinar a especialidade exclusivamente ante a presença de ruído excessivo. 5. Ação rescisória admitida em juízo rescindendo. Em novo julgamento da causa, resta reconhecida a especialidade do período de 05.03.1997 a 18.11.2003, ante a exposição do segurado a agentes químicos, com o que restam implementados os requisitos para a concessão de aposentadoria especial a contar da DER. (TRF4, ARS 5004450-48.2020.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, juntado aos autos em 25/08/2022)

No JEF é vedada a ação rescisória. No caso das decisões que reconhecem a inexistência de interesse recursal, a ação rescisória poderá encontrar óbice nos filtros processuais previstos para tal hipótese, entre eles: é necessário que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre tal questão, é dizer, o acórdão chegou à conclusão diversa em face da omissão acerca do conjunto probatório. É de se ver que a orientação, no sentido de não reconhecer o interesse recursal, cria uma séria de problemas para o jurisdicionado.

O art. 1.009 preceitua que, sempre que se tiver interesse em impugnar uma sentença (art. 203, § 1º, 485 e 487), é cabível apelação. A apelação “serve não apenas para impugnar as questões decididas na sentença, mas também se presta para impugnar todas as questões decididas ao longo do procedimento que não comportarem recurso de agravo de instrumento (art. 1.009, § 1º)”.[4] Quando a causa se encontrar madura para imediato julgamento (art. 1.013, § 3º), o tribunal deve decidir desde logo o mérito.

Existe, por parte do advogado, o interesse no reconhecimento do tempo de especial por todos os agentes nocivos aos quais o segurado esteve efetivamente exposto. E daí a impugnação completa do formulário PPP desde a via administrativa. Imaginemos a insegurança jurídica vivenciada pelos advogados previdenciaristas após a afetação dos Temas 1083 e 1090 no STJ ou, como já se viu no JEF, com os Temas 174, 317 e escambau. Quando “deixamos de lado vários possíveis desfechos de um lance ao favorecer o que realmente aconteceu”[5], o advogado é o primeiro a ser acusado pela omissão, como se ele estivesse querendo ajuizar uma ação para cada agente nocivo!

________________________________________

Bah1: TRF4, AC 5003486-32.2015.4.04.7113, SEXTA TURMA, Relator ALTAIR ANTONIO GREGÓRIO, juntado aos autos em 14/12/2023.

Bah2: SCHUSTER, Diego Henrique. Direito Previdenciário do Inimigo: um discurso sobre um direito de exceção. Juris Plenum: previdenciária, Porto Alegre, v. 7, n. 28, p. 171–190, 2019.

Bah3: TRF4, ARS 5012145-92.2016.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 14/09/2023.

Bah4: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 519-520.

Bah5: GESSINGER, Humberto. Nas entrelinhas do horizonte. Caxias do Sul: Belas-Artes, 2012. p. 147-149.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A DECISÃO PROFERIDA EM SEDE DE ED: TEMA 1.102/STF

REVISÃO DA VIDA TODA: VAMOS INTERPRETAR/COMPREENDER PARA DECIDIR?

A EQUIVOCADA APLICAÇÃO DO TEMA 629/STJ: ESTAMOS INVERTENDO AS COISAS